segunda-feira, 21 de abril de 2014

O homem que queria ser um rapaz


Mikie, ele preferia Mikie a Michael. Afirmava que o nome se lhe adequava melhor, “Sabe, não é tão formal”, e, tal como viria a concluir mais tarde, esse nome também não soava tão adulto.
Quando começou a terapia, Mikie era um neurocirurgião bem-sucedido e respeitado. Trabalhava duramente durante muitas horas e era conhecido pela sua paciência, bem como pela sua competência.
Mikie tinha tudo: uma grande casa, carros antigos e uma extensa galeria de arte de artistas bem conhecidos. Mas não tinha esposa, não tinha uma pessoa afectivamente significativa na sua vida, não tinha um namoro sério nem de qualquer tipo. Mikie estava sozinho e tinha mesmo desistido de namorar. Geralmente sociável e cheio de sentido de humor, Mikie foi encaminhado para a terapia devido a uma depressão tão incapacitante que, na opinião dos seus colegas, podia colocar os seus pacientes em risco. Como seria de prever, o Dr. Mikie tinha um aspecto abatido, sem um sorriso visível. Encharcado em suor, com o peito a arfar, assemelhava-se a um atleta de maratona que acabava de atravessar a linha da meta num esforço inglório. Definitivamente, não transmitia a imagem de um profissional bem-sucedido.
Ao longo dos meses seguintes, eu ouvi a sua história. Com o tempo percebi que o que era mais real na sua vida era a sua depressão e não o cirurgião extrovertido e aparentemente feliz. Na verdade, ele detestava ter esta “profissão de curar”, interessava-se pouco por pessoas e estava zangado com as exigências da vida. O que Mikie realmente desejava era que o deixassem sozinho e que o deixassem brincar.
O seu pai, um homem abatido, mas sobretudo zangado, era aparentemente incapaz de manter um emprego. Sendo um mecânico hábil e com o dom da palavra, conseguia arranjar inúmeros empregos, mas era ainda mais bem-sucedido a perdê-los. O seu humor variava entre o desespero zangado e momentos calmos e divertidos de prazer, embora, devido ao seu sarcasmo mordaz, esses momentos acontecessem frequentemente à custa de alguém. Mikie cresceu sem saber que pai iria chegar a casa à noite. À medida que ia crescendo, a solução encontrada passava por estar a maior parte possível do tempo longe de casa.
Conquanto o seu pai não valorizasse o tempo que ele gastava nos estudos, nem os resultados que obtinha, Mikie ganhou a atenção e aprovação dos seus professores. Como reconhecimento, foi premiado com bolsas de estudo para a faculdade de medicina. Do seu pai, recebeu um desdém amargurado: “O quê? A sub-normalidade do Estado de Illinois não é suficientemente boa para ti? Harvard é uma treta!”.
Desde que a mãe de Mikie tinha morrido com cancro no cérebro, tinha ele apenas três anos de idade, que ele não se lembrava o que era um aconchego calmante nos braços de uma mãe. Também não tinha ninguém que o ajudasse a sarar as feridas infligidas pela raiva cortante do pai, disfarçada de “gozo saudável”.
À medida que a terapia progredia, aumentavam também as desconfianças de Mikie. À medida que nós íamos avançando, a confiança dele em mim ia diminuindo progressivamente: acusava-me de não o levar a sério ou de ser demasiado sério, indiferente e técnico. Muitas vezes, os seus sentimentos estavam restringidos à raiva e ao desespero.
Gradualmente, porém, a sua raiva tornou-se predominante e ele lançar-se-ia numa fúria incontida se eu falasse sem a monotonia que ele próprio me tinha atribuído. Fui também instruído a sentar-me quieto: “Não mexa um músculo”. Se eu falhasse na realização da sua satisfação, ele soltaria uma invectiva inflamada, exigindo saber quem é que eu pensava que era.
Este período da terapia durou cerca de um ano. Nenhuma das intervenções que tentei pareceu ter qualquer consequência. Um dia, no meu desespero, disse-lhe que não conseguia trabalhar sob estas orientações impostas: “Você está a cortar a minha circulação vital, o meu oxigénio emocional, e está a pôr o meu corpo dormente. O mundo estéril e rarefeito que você está a criar está a ferir-nos a ambos. Não vou continuar assim. Desta maneira não posso ajudá-lo a si nem a mim próprio.”
Esperei por uma explosão, mas ela não apareceu. Em vez disso, o que recebi foi aceitação. Aparentemente, quando quebrei as suas regras, Mikie ficou aliviado. Sozinho, ele tinha apenas indícios daquilo que lhe tinha acontecido emocionalmente. Agora alguém tinha colocado isso em palavras. Nesta minha assunção do papel de realizador e director, ele conseguiu ver o quão “mecanizado e dirigido” se sentia por dentro.
Mikie tinha crescido demasiadamente rápido, mas não estava emocionalmente apto para aguentar a profissão que ele tinha “escolhido”. Tornara-se diferente do seu pai até que, como se se tivesse aberto um buraco na sua mente, ele sentiu o seu pai dentro de si, impulsionando-o, empurrando-o, ridicularizando-o. O pai de quem ele teve de se afastar, o pai que tentou tão arduamente desligar dentro de si mesmo, através da sobrecompensação de ser o médico bom, paciente e altruísta.
Então, quão intrínsecas seriam a sua bondade e generosidade e quanto ressentimento, frieza e distanciamento fariam também parte dele? É com esta questão que agora se debate internamente, mas penso que ele sente que já cumpriu tempo suficiente como o cirurgião da sua própria mãe – erradicando e destruindo nos outros a doença que a levou para longe dele. Agora Mikie necessita de se esquivar ao peso dessa responsabilidade e, nas suas próprias palavras, ele “só quer brincar, mas não sozinho”.
Neste momento, começa a falar como um jovem cheio de expectativas, entusiasmo e desejo de brincar pelo mais simples e puro prazer de brincar, ao mesmo tempo que também procura descobrir mais acerca de quem ele é realmente. Mikie está a tomar grandes decisões na sua vida e colocou uma pausa nos seus compromissos no hospital e na universidade. Está à procura de uma vida nova, uma vida boa, e eu irei estar com ele, pelo menos durante uma parte do percurso – e isso será um prazer.

Richard Raubolt in Cenários Psicanalíticos do Trauma


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