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sexta-feira, 10 de março de 2017

O Público e o Privado


A fronteira que se estabelece entre o público e o privado sempre exigiu reflexão às Ciências Sociais. Tais conceitos são instáveis, uma vez que o público e o privado se misturam constantemente em diversas situações. Podemos dizer que grande parte daquilo que é o nosso quotidiano dança nessa fronteira entre o que se pretende resguardado e a resguardar o que se exige que seja público, o que se aceita tornar público e ainda o que se pretende manter privado. Hoje, a reflexão permanece, pontuada agora por questões que surgem com o desenvolvimento tecnológico.
Face às ameaças do chamado “terrorismo” do séc. XXI, os sistemas de vigilância estão cada vez mais apertados (logo, intrusivos) e o direito à privacidade está em debate desde então. Paradoxalmente, há um certo “desperdício” de privacidade que nasce com a chegada das redes sociais: há quem partilhe com centenas de pessoas (vulgo, “amigos”) todas as fotografias de férias, todas as conquistas dos filhos documentadas em vídeo ou tudo o que almoçaram e jantaram ao longo do mês. É verdade que se essa possibilidade existe, é um direito usá-la. É também verdade que sempre houve quem se encontrasse mais exposto: as chamadas figuras públicas, (precisamente porque a sua vida é mais pública que privada). O que nos leva a outra reflexão: o que hoje acontece é que, de certa maneira, podemos todos ser figuras públicas. Aliás, ser um cidadão mais anónimo parece até significar que se é, de certa forma, menos importante. Quando se pergunta às crianças o que querem ser quando forem grandes ouve-se demasiadas vezes: “famoso”. Ou seja, a fama deixa de ser uma consequência natural de um trabalho ou conquista para ser um fim em si. Ser famoso é ser visto, ser falado, logo, ser “alguém”.
O problema é que isto implica um mundo em que só a visibilidade e a projeção no mundo exterior é que parecem validar o que somos (ou quem somos). Quem não mostra é como quem não existe. Mas quando tudo se torna visível, o que sobra para sonhar? Quando tudo se torna vendável o que sobra de “nosso”? Ao mostrar-se tudo a todos nada mais resta de "íntimo". A intimidade, o mistério que só se revela a quem se quer, permanecerá sempre como um nicho mágico a proteger. Certo é que, nas suas origens burguesas, ela consistia nas convenções de decoro - honra, pudor, vergonha - que protegiam o corpo, o sexo e as emoções do olhar alheio. Mas a intimidade é muito mais que isso: é o que de mais profundo há em cada um de nós. É o que nos distingue dos restantes e o que partilhamos com quem nos é especial. Mais, é exatamente por meio dos conteúdos internos e íntimos que se torna possível discernir o mundo interno do mundo externo. A intimidade contribui para a delimitação do espaço psíquico, para aquilo que nos separa dos outros. Sem a preservação do privado — do íntimo, da profundidade — seremos todos iguais. E isso só pode ser muito triste.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

O Elefante Acorrentado


O conto do elefante acorrentado, de Jorge Bucay, faz-nos pensar acerca dos conceitos de liberdade e de submissão/obediência. Lembra-nos que, na tradição dos espectáculos circenses, o elefante, animal de grande porte e muita força, permanece preso, antes da sua entrada em cena, amarrado por uma corrente e por uma estaca no solo. Uma vez que uma estaca não passa de um pequeno pedaço de madeira, e que a força da corrente não se compara à força do animal, percebemos que não será essa a verdadeira razão que mantém o elefante amarrado a uma vida de obediência e subserviência. Porque não foge então o elefante?
O condicionamento do elefante tem raízes profundas. O narrador conta-nos que descobriu que o elefante não foge porque desde pequeno que está amarrado à estaca. E imagina, então, o pequeno elefante, tentando soltar-se de uma estaca e de uma corrente que, nessa altura, seriam demasiado fortes para si. Assim, chega um dia em que o pequeno elefante fica verdadeiramente amarrado — pelo corpo e, sobretudo, pelo pensamento. É o dia em que desiste, o dia em que acredita que não é capaz, o dia em que aceita que o seu destino é permanecer preso. E sem sonhar que as circunstâncias mudam, pois ainda não tem experiência que o ensine, jamais volta a colocar à prova a sua capacidade e a sua força. Deixa-se estar.
O elefante não foge porque não sabe que é capaz de o fazer. E isto funciona como uma perfeita metáfora para aquilo que tantas vezes aconteces nas nossas vidas: as incapacidades assumidas, as incompetências declaradas, as dificuldades percebidas, os desmerecimentos repetidos. Muitas delas são resquícios de dificuldades precoces que hoje seriam perfeitamente ultrapassáveis. Ou porque, em pequenos, tentámos fazer valer os nossos desejos, sem sucesso; ou porque alguém nos fez interiorizar, repetidamente, que não seríamos capazes ou que não merecíamos melhor; ou porque ouvimos “nãos” que acorrentaram todas as possibilidades. Todos esses impedimentos atrofiam-nos e são interiorizados como limitações que nem sempre correspondem à realidade. As verdadeiras correntes são as do pensamento: tudo o que nos disseram que não podíamos ser, que não podíamos ter ou que não podíamos, sequer, sonhar.
Há muita coisa que não está acessível ou que pode não ser alcançável. A ideia de que não há limites para o que podemos fazer é irrealista e omnipotente. Há limites, mas talvez não sejam tantos nem tão redutores quantos nos fizeram crer. Talvez o elefante não possa chegar à Lua mas não precisa de ficar amarrado àquela pequena corrente ou estaca: pode ir conhecer o mundo e descobrir um outro lugar onde lhe seja permitido ser livre e, necessariamente, mais feliz.

Jornal i (9.1.2017)

Ontem, no jornal i — ao lado de um anúncio de viagem para as Filipinas onde o elefante talvez estivesse bem melhor do que no circo (a não ser que fosse parar ao Zoológico de Manila)

sábado, 5 de março de 2016

Beijos dão-se a quem os quer

The Kiss, 1891, Mary Cassat

Chegou ao pé de mim e baixei-me para lhe dar um beijinho, ao que ele não correspondeu. Aliás, encolheu-se, parecia incomodado. Mais tarde, a sós, perguntei-lhe se gostava de beijinhos. Disse-me que não. Desde então, cumprimento-o com um olá e um sorriso. Beijos só se dão a quem os quer.
Embora muitos miúdos gostem de beijinhos e abraços, uma outra parte das crianças não gosta de ser tocada como forma de cumprimento. Entre adultos, e particularmente em Portugal, generalizou-se este cumprimento, mais informal. Mas não é por acaso que em muitas culturas o beijinho só é bem recebido a partir de um determinado grau de intimidade. “Dá um beijinho à tia Maria”, ordenam-lhe os pais, quando chega aquela mulher estranha, que nunca viu na sua vida. Que raio, mas porquê? “É uma questão de boa educação”, respondem-lhe. Mas onde está escrito que a boa educação implica distribuir beijos quando não nos apetece? O beijo forçado é um gesto extremamente intrusivo. O corpo é da criança, não é de mais ninguém.
Quando uma criança demonstra claramente não gostar de dar ou receber beijos ou abraços é suposto haver respeito. Para que ela saiba que tem o direito de escolher quem a abraça, quem a beija e quem a toca. Para que aprenda que o seu corpo não tem de servir as convenções ou o interesse alheio. Quando expomos  uma criança a estes abusos estamos a passar a perigosa e errada mensagem que a criança “boazinha” e “bonita” é aquela que se permite ser tocada, aquela que expressa educação e simpatia através do contacto corporal; que a criança “boazinha” e “bonita” e, consequentemente, aceite e aprovada pelos outros, é aquela que não coloca limites sobre seu próprio corpo. O desrespeito surge também sob a forma de chantagem emocional: “Não gostas de mim?”, perguntam. Estão a confundir tudo, o afecto não se mede aos beijos. E se a pessoa está carente de beijos, pode sempre arranjar um namorado.
Ainda que seja com a melhor das intenções, obrigar uma criança a dar um beijo é violento. Que responda, que cumprimente, sim. Beijar ou abraçar, no interesse de quem? Se a criança quiser dar beijinho, dará. Se a criança diz que não quer, que não lhe apetece, ou simplesmente vira a cara, não o levemos a peito. A criança tem direito ao seu espaço, à sua intimidade e ao controlo do seu corpo. O corpo de uma criança tem de ser tratado com muito respeito. Embora ela precise de nós na relação com ele (tomar banho, vestir-se) se ela começa a colocar limites (querer tomar banho sozinha, querer vestir sozinha, não querer ser abraçada) há que começar a pensar sobre isso. No que respeita à nossa intimidade, “não” significa “não”, em qualquer idade. E só se nos respeitarem poderemos também aprender a respeitar o outro.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

O Homem na Arena

Arena de Pula, Croácia
"Não é o crítico que importa; nem aquele que aponta onde foi que o homem tropeçou ou como poderia ter feito melhor. O crédito pertence ao homem que está na arena, cujo rosto está manchado de pó e suor e sangue; que luta com bravura; que erra, que desaponta uma e outra vez, porque não há esforço sem erros e decepções; mas que, na verdade, se empenha nos seus feitos; que conhece grandes entusiasmos, as maiores paixões; que se entrega a uma causa digna; que, no melhor dos casos, conhece por fim o triunfo da grande conquista e, no pior, se fracassar, fracassa ousando grandemente (...)"

— Theodore Roosevelt

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

O Louco


Perguntais-me como me tornei louco.
Aconteceu assim:
um dia, muito tempo antes
de muitos deuses terem nascido,
despertei de um sono profundo e notei que todas
as minhas máscaras tinham sido roubadas
- as sete máscaras que eu havia confeccionado
e usado em sete vidas -e corri sem máscara pelas
ruas cheias de gente, gritando:
"Ladrões, ladrões, malditos ladrões!"

Homens e mulheres riram de mim e alguns correram
para casa, com medo de mim. E quando cheguei à praça
do mercado, um garoto trepado no telhado de uma
casa gritou: "É um louco!".

Olhei para cima, para vê-lo.
O sol beijou pela primeira vez minha face nua.
Pela primeira vez, o sol beijava minha face nua, e
minha alma inflamou-se de amor pelo sol,
e não desejei mais minhas máscaras. E, como num
transe, gritei:

"Benditos, benditos os ladrões
que roubaram minhas máscaras!"

Assim me tornei louco.

E encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura:
a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós.

― Khalil Gibran

sábado, 2 de agosto de 2014

Sobre a Pequenez

Randy P. Martin Photography

Somos pequeninos. Somos imensamente pequenos. Somos tão pequenos que quando nos lembramos disso nos assustamos com a nossa fragilidade. Por outro lado, como somos pequenos também temos muito para nos entreter. Muito que descobrir. Podemos encontrar coisas novas em cada esquina. Podemos surpreender-nos com milhões de quilómetros quadrados de desconhecido e com biliões de pessoas que ainda não pudemos conhecer. O que seria se o mundo fosse à nossa escala e fossemos obrigados a habitar a vida inteira circunscritos a três ou quatro metros de terreno? Definharíamos. Somos pequeninos mas temos um mundo inteiro à nossa espera. Somos pequeninos, mas não pequeninos o suficiente para sermos insignificantes. Podemos fazer a diferença. E o melhor é que podemos simultaneamente passar despercebidos. Podemos errar e fazer disparates sem que o mundo se desmorone em absoluto por nossa responsabilidade. Somos pequeninos e isso não é necessariamente mau, pelo contrário, é um mundo inteiro de possibilidades.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Liberdades e Libertações


No dicionário, a definição de liberdade aponta para: “Direito ou condição de alguém dispor de si, de fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Condição de homem livre. Independência.” É um conceito filosófico que norteia e simultaneamente intriga a humanidade desde sempre por ser tão fácil perceber que a ideia de liberdade tem limites e limitações. O Homem que vive em sociedade sabe que não pode ser absolutamente livre. Pelo menos no que respeita às normas de conduta e aos deveres a que não pode fugir. São limites da realidade. 

Então de novo olhamos para a filosofia, para a psicologia e para a psicanálise que, abordando outros vértices da ideia de liberdade, nos ensinam sobre a “liberdade de ser”. E ensinam-nos sobre ser autêntico, ser espontâneo, ser eu mesmo independentemente da vontade dos outros. Falam-nos da liberdade de não assumir uma identidade que não me pertence unicamente para agradar ao(s) outro(s). Contam-nos sobre o poder de encontrar a minha própria verdade, pois é a procura da verdade que nos liberta (sejam verdades sobre nós, sobre os outros, ou sobre o mundo). O caminho explica-nos que conhecimento é também liberdade. Querer ser livre de saber e querer saber para ser livre. 

Nesta linha, já Descartes dizia que age com mais liberdade quem melhor compreende as alternativas que antecedem a escolha. E assim, só quem teve a possibilidade de tactear os vários caminhos possíveis poderá escolher livremente por onde seguir, quem ser e o que fazer da sua vida. Se sentirmos que podemos traçar o caminho que quisermos, podemos escolher mais livremente, de acordo com o nosso desejo. Só nosso. Por outro lado, quando somos doutrinados desde cedo, quando alguém nos aponta sistematicamente o caminho, não há outra verdade para além daquela que nos é injectada. Vejam-se os regimes ditatoriais, que impregnam a mente alheia de dogmas que impedem os indivíduos de escolher outras alternativas. Não concebem a possibilidade de poder ser, pensar e fazer diferente. É a total ausência de liberdade. É o pensamento escravizado logo desde que nasce e que bloqueia à partida toda a expansão da mente.

E perante todos os condicionamentos envolventes, os limites tornam-se limitações. Estas, se não devidamente questionadas, podem passar despercebidas toda uma vida. Padrões de funcionamento/pensamento vincados em nós que nos dão a ilusão de sermos livres quando, em boa verdade, somos escravos de nós mesmos, sem o sabermos. Portanto podemos dizer que nunca seremos totalmente livres enquanto a causa/origem dos nossos comportamentos permanecer tantas vezes desconhecida. São dados excluídos da consciência e aos quais só conseguimos ter acesso depois de superadas determinadas defesas e resistências (também elas na maioria das vezes inconscientes). 

Contudo, a beleza de tudo isto é que estas limitações são mais fáceis de ultrapassar do que os limites da realidade (que nos ultrapassam). Só dependem de nós. Somos nós que nos amarramos a nós mesmos. E quanto mais e melhor conhecermos a nossa verdade interior, menos escravos seremos dos nossos medos, das nossas crenças, dos nossos bloqueios. Seremos mais livres dos nossos traumas e das nossas defesas. E só assim se faz o caminho para uma maior liberdade de ser. Essa, uma vez conquistada, ninguém nos pode tirar. Será, no fim de contas, a mais nossa, única, e a mais importante de todas.

sábado, 29 de março de 2014

Pedrinha (Sobre a Psicanálise)

As pessoas muitas vezes questionam-se se a psicanálise torna a vida mais fácil. Muito naturalmente, elas desconfiam de qualquer coisa que afirme isso. A psicanálise, além de ser um processo doloroso em si mesmo, não altera o facto de que a vida é difícil. O melhor que pode acontecer é a pessoa que está a ser analisada, vir gradualmente a sentir-se cada vez menos à mercê de forças desconhecidas, tanto internas quanto externas, e cada vez mais capaz de lidar à sua própria maneira com as dificuldades inerentes à natureza humana, ao crescimento pessoal e à gradual obtenção de um relacionamento maduro e construtivo com a sociedade.


Donald Winnicott

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

O Elefante Acorrentado


"Quando eu era pequeno, adorava o circo e aquilo de que mais gostava eram os animais. Cativava-me especialmente o elefante que, como vim a saber mais tarde, era também o animal preferido dos outros miúdos. Durante o espectáculo, a enorme criatura dava mostras de ter um peso, tamanho e força descomunais… Mas, depois da sua actuação e pouco antes de voltar para os bastidores, o elefante ficava sempre atado a uma pequena estaca cravada no solo, com uma corrente a agrilhoar-lhe uma das suas patas. No entanto, a estaca não passava de um minúsculo pedaço de madeira enterrado uns centímetros no solo. E, embora a corrente fosse grossa e pesada, parecia-me óbvio que um ani­mal capaz de arrancar uma árvore pela raiz, com toda a sua força, facilmente se conseguiria libertar da estaca e fugir.
O mistério continua a parecer-me evidente. 
O que é que o prende, então? Porque é que não foge?
Quando eu tinha cinco ou seis anos, ainda acreditava na sabedoria dos mais velhos. Um dia, decidi questionar um professor, um padre e um tio sobre o mistério do elefante. Um deles explicou-me que o elefante não fugia porque era amestrado.
Fiz, então, a pergunta óbvia:
— Se é amestrado, porque é que o acorrentam?
Não me lembro de ter recebido uma resposta coerente. Com o passar do tempo, esqueci o mistério do elefante da estaca e só o recordava quando me cruzava com outras pessoas que também já tinham feito essa pergunta. Há uns anos, descobri que, felizmente para mim, alguém fora tão inteligente e sábio que encontrara a resposta:
O elefante do circo não foge porque esteve atado a uma estaca desde que era muito, muito pequeno.
Fechei os olhos e imaginei o indefeso elefante recém-nascido preso à estaca. Tenho a certeza de que naquela altura o elefantezinho puxou, esperneou e suou para se tentar libertar. E, apesar dos seus esforços, não conseguiu, porque aquela estaca era demasiado forte para ele. Imaginei-o a adormecer, cansado, e a tentar novamente no dia seguinte, e no outro, e no outro… Até que, um dia, um dia terrível para a sua história, o animal aceitou a sua impotência e resignou-se com o seu destino. Esse elefante enorme e poderoso, que vemos no circo, não foge porque, coitado, pensa que não é capaz de o fazer. Tem gravada na memória a impotência que sentiu pouco depois de nascer. E o pior é que nunca mais tornou a questionar seriamente essa recordação. Jamais, jamais tentou pôr novamente à prova a sua força."

Jorge Bucay in “Deixa-me que te conte. Os contos que me ensinaram a viver”

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Pedrinha (Das aprendizagens fundamentais)

Fundamentalmente, para que a psicopatologia não progrida, deve ter-se aprendido: pelo exemplo, a perdoar; pela ternura, a amar; pela liberdade, a ser espontâneo; pela clareza de propósitos, a exigir a verdade; pelo entusiasmo, a desejar saber; pela alegria, a gostar de viver; pelo deslumbramento que desencadeou, a apreciar a beleza.


António Coimbra de Matos (in Mais Amor Menos Doença)

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Reflexão de Fim de Ano

§  Este ano termina e estou mais apaixonada pela vida. Tinha conhecimento que vivíamos um momento de expansão da consciência mas saber é diferente de sentir. Só a experiência dá vida aos conceitos.

§  Não sei como será para o ano porque uma das coisas que me atingiu como um raio foi a noção de IMPERMANÊNCIA, de tudo aquilo que é hoje e que amanhã deixa de ser. Isto traz-nos ao momento presente, que se torna mais puro e melhor vivido ao conseguirmos um maior desprendimento do passado (o que doía ontem já não dói hoje) e maior confiança no futuro (o que dói hoje não irá doer amanhã). Tudo passa. A energia que desperdiçamos na angústia com aquilo que já lá vai e com aquilo que há-de vir é demasiada e faz muita falta para vivermos bem o presente. Como o nome indica, o presente é o momento de estarmos PRESENTES.

§  Essa impermanência das coisas leva-nos à constatação de que o que parece mau nem sempre é mau e de que o que parece bom nem sempre é bom. Sou levada a crer que a nossa existência talvez pressuponha realmente ser-se feliz enquanto cá estamos. Dizem por aí às vezes que a vida é feita para sofrer mas parece-me mais que o sofrimento é uma opção, ou seja, que depende da perspectiva do observador. No quotidiano, está a tornar-se mais fácil ver o lado bom das coisas aparentemente más e, por incrível que pareça, quanto mais se pratica isto mais faz sentido. Penso que a esta tendência para nos pacificarmos perante os obstáculos se pode chamar ACEITAÇÃO. Será tanto mais fácil quanto maior a confiança de que por trás de uma complicação pode estar uma bênção.

§   A aceitação anda de mãos dadas com a REFLEXÃO, porque para aceitar tenho que perceber que sou altamente responsável pelo que me acontece, e com a GRATIDÃO, pois se eu aceito que coisas menos boas me acontecem e que muitas vezes essas coisas são indicadoras de que algo melhor está a caminho, torno-me uma pessoa mais grata por tudo o que gira em meu redor. O inverso disto será praguejar, culpar os outros ou sentir-me uma vítima do Universo e creio que este é um terreno pantanoso de onde dificilmente se sai. 

§  A aceitação, a reflexão e a gratidão só podem germinar num pensamento FLEXÍVEL, capaz de questionar o mundo (interno e externo) e de aceitar perspectivas divergentes e hipóteses que nos ultrapassem. Flexibilidade dos conceitos e das ideias. Certezas absolutas são para deitar fora. Conviver com a dúvida é fundamental (já que a impermanência existe) e para isso precisamos de ser plásticos. A rigidez torna-nos duros, por vezes implacáveis, connosco e com os outros.

§   A flexibilidade ajuda-nos a ver as coisas como um FLUXO contínuo, não dicotomizando nem polarizando (bom e mau, certo e errado, feliz e infeliz, passado e futuro). Essa perspectiva permite-nos maior capacidade de integração das partes no todo. Todo o passado conduz ao presente e ao futuro. Tudo o que faço hoje se reflecte amanhã. Tudo o que dou agora receberei depois (e tudo o que não dou naturalmente não receberei). Todo o meu passado me conduziu à pessoa que sou e me encaminha para a pessoa que serei. A existência é um continuum.

§  Se o Universo funciona num continuum podemos dizer que, enquanto indivíduos, estamos todos ligados. É por isso que a UNIÃO e a COOPERAÇÃO devem prevalecer sobre a competição. Porque todos juntos temos mais força do que separados. Esta UNIÃO só pode acontecer se não se basear na dependência. Para haver verdadeira cooperação todos os indivíduos devem possuir AUTONOMIA (fundamentalmente emocional pois o resto vem por acréscimo). Caso contrário, uns sugam os outros e numa relação parasita/hospedeiro nada se cria, tudo se consome.

§  Para além da questão da força/energia colectiva, importa pensar que se estamos todos ligados aquilo que eu sou e que eu faço influencia aqueles que se relacionam comigo. Temos uma esfera de influência em nosso redor e essa consciência traz-nos RESPONSABILIDADE. Essa responsabilidade não é só para com seres humanos mas também para com os ANIMAIS e com o PLANETA, a quem também estamos ligados. Ter noção de que o chão que pisamos é responsabilidade nossa é cada vez mais fundamental.

§  Como a LIBERDADE é um pilar da nossa existência (o outro será o AMOR) é preciso aceitar que há quem não respeite nada disto. O que nos conduz à ideia de que, sobre estes e outros assuntos, por mais que gostássemos que os outros mudassem não nos compete a nós interferir na vida alheia. Há uma certa omnipotência subjacente a isto. A única e a melhor forma de produzir mudança, é sermos nós a mudar. Para que através da nossa esfera de influência possamos, talvez, provocar alguma transformação. Pelo exemplo (amor) e não pela crítica/castigo (guerra).


§   Obrigado a todos aqueles que eu amo e que me amam (cada vez mais e melhor), que enriqueceram o meu ano e que fizeram de mim uma pessoa mais atenta, mais grata, mais genuína, mais afectuosa e mais presente, com o vosso exemplo e amor! Muita Paz, muita Luz, Saúde e Amor. Feliz 2014!

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Pedrinha (Da Liberdade de Ser)


“A análise é árdua e faz sofrer. Mas quando se está desmoronando sob o peso das palavras recalcadas, das condutas obrigatórias, das aparências a serem salvas, quando a imagem que se tem de si mesmo torna-se insuportável, o remédio é esse. Pelo menos, eu o experimentei (...) Não mais sentir vergonha de si mesmo é a realização da liberdade (…). Isso é o que uma psicanálise bem conduzida ensina aos que lhe pedem socorro”.


Françoise Giroud

domingo, 29 de setembro de 2013

Pedrinha (em dia de eleições)

É um mundo deprimido, sem chama nas almas, que impõe/nos impõe lutar pelo progresso – social, individual, do conhecimento e da ventura – e pela transformação num mundo em que seja possível voltar a sonhar com o futuro.
Progresso económico, sim, mas em liberdade, justiça e distribuição.
Com liberdade, continuaremos a caminhada – do progresso e pelo progresso. Porque jamais – assim o queremos, assim o determinamos – nos deixaremos amordaçar! O silêncio conduz à morte da liberdade.


António Coimbra de Matos 

domingo, 22 de setembro de 2013

Pedrinha (Do dizer que não)

(…) E é do NÃO ao que te limita e degrada que tu hás-de construir o SIM da tua dignidade. 

Virgílio Ferreira


quinta-feira, 14 de março de 2013

Existir


Para encontrar a saída siga as indicações.

Pedrinha (Do Tactear)


“É mesmo essencial, para o seu equilíbrio psíquico e para a salutar expansão  da sua personalidade, que o adolescente possa tactear ou encetar vários caminhos antes de verdadeiramente escolher o que melhor corresponde à sua maneira de ser, de sentir o mundo e de perspectivar o futuro. Não lho permitir será amputá-lo para todo o sempre nas suas potencialidades evolutivas.”

António Coimbra de Matos

sexta-feira, 6 de julho de 2012

O Estranho do Lado


“ (…) Assim como na Física há uma lei segundo a qual dois corpos não ocupam o mesmo espaço ao mesmo tempo, deve haver outra lei, no universo subjetivo, que impede duas individualidades de viverem a mesmíssima vida. Tenho a impressão que a insistência em contrariar esse princípio está por trás de muitos e graves desencontros por aí.
Desde a adolescência, e provavelmente ainda antes, somos alimentados com a ilusão de que um dia encontraremos alguém com quem iremos nos fundir. A tal pessoa, aquele, a mulher da nossa vida, o príncipe encantado – todos esses são agentes do destino que teriam a função, na nossa história pessoal, de rasgar a couraça da individualidade, penetrar nosso casulo e nos salvar, de forma permanente, da horrível solidão de ser um indivíduo. A partir desse momento redentor, a nossa dor fundamental seria superada e seríamos, então, felizes para sempre. No outro.
Algumas vezes, mesmo na vida real, chegamos perto desse estado idílico de aniquilação. É quando estamos apaixonados. Nesse momento mágico – e, segundo o Freud, patológico - nossos sentimentos em relação ao outro são tão violentos que parecem romper o isolamento essencial. Em tal estado de comoção de ser parte do outro. Se ele se afasta, sentimos dor. Se ele está perto, sentimos prazer. Parece ser impossível viver sem ele, porque se tornou parte de nós.
Em “O Monte dos Vendavais”, a jovem apaixonada diz ao rapaz “Eu te amo”, e ele responde “Eu sou você”. Não existe na literatura ou no cinema uma declaração de amor mais radical do que essa.
Há outro momento em que também nos sentimos perto desse sentimento. É no sexo. Em meio ao prazer, aquilo que nós somos desaparece temporariamente em direção ao outro. Mergulhamos numa torrente tão intensa que, por alguns minutos, não somos mais que o conjunto daquelas sensações. Há uma pequena morte aí, um breve suicídio prazeroso no qual mergulhamos felizes, levado pelo corpo e pela personalidade do outro.
Mas esses momentos são terrivelmente efêmeros, não? Mesmo a mais intensa paixão é passageira. Cedo ou tarde, ainda que contra a nossa vontade, somos arrastados de volta à normalidade de sermos apenas um. Logo chega o momento em que é preciso negociar com a personalidade do outro, com a percepção do outro, com o desejo do outro. Com isso se desfaz a ilusão de pertencer. Deparamos, de novo, com a nossa assustadora e iniludível solidão interior. Sabemos disso, vivemos isso desde crianças, mas uma parte de nós continua sonhando com uma paixão tão arrebatadora, tão dominante, que nos livre para sempre de nós mesmos. Crescer, eu acho, é deixar também essa fantasia para trás.
Alguns recusam isso terminantemente. Insistem em esperar pelo sonho ou – muito pior - tentam transformar a vida real a dois num exercício de destruição das personalidades. Fazemos tudo juntos, pensamos o mesmo, gostamos das mesmas coisas, compartilhamos as mesmas experiências, dizem. Na boa ou na marra, vão arrastando o outro a uma vivência que é uma réplica da sua. Até o ponto em que, de tão parecidos, não tenham mais nada a contar um ao outro. Então se separam.
Estou exagerando? Claro que sim. Mas, mesmo entre pessoas que não vivem na caricatura, o impulso comum de controlar o outro faz parte do movimento de negação da individualidade. Ele se recusa a reconhecer o outro com as suas necessidades próprias, sua existência fora de nós. O desejo de aprisionar é o impulso de se proteger do outro, que, insistindo em ter vontade própria, pode fazer algo que nos machuque.
Enfim, acho que é disso que os sonhos falam. Da nossa vontade de ser forte como indivíduos e do nosso medo oceânico de nos desligarmos dos outros. Da contradição entre a vontade de crescer e o impulso de permanecer um bebê chorão, ligado ao outro por um cordão umbilical. Os sonhos contam que o amor, lindo que é, essencial como possa ser, não nos salva de sermos nós mesmos. Mesmo quem respira suavemente ao nosso lado, adormecida, tem sonhos separados dos nossos. É uma pessoa estranha que amamos, mas sobre a qual nunca saberemos o suficiente. É preciso respeitar esse mistério.”
Ivan Martins