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quinta-feira, 14 de julho de 2016

Co-Dependência


A uma, conheci-a após o falecimento do marido. Tinha passado vinte anos a cuidar dele, um alcoólico em espiral destrutiva despindo-o quando não era capaz, deitando-o, ou até levantando-o do chão, com a força que não tinha. A outra, conheci-lhe a história de outra maneira; conta ela que sempre viveu para a mãe mulher deprimida, cocainómana, fazendo vigílias à sua cabeceira nos dias em que esta não saía da cama ou indo buscar o “produto” quando era necessário.
Há milhares de histórias assim. São histórias de pessoas cuja vida gira não em torno de si e dos seus sonhos mas em torno da disfuncionalidade de um outro. Pode parecer preocupação ou altruísmo, mas quando nos destrói a possibilidade de viver a nossa vida, é preciso parar: o que muitas vezes não acontece. Há ligações em que não há limites, nem dum lado, nem do outro. Então, há quem chame, a este funcionamento, a co-dependência, isto é, estar emocionalmente dependente (no sentido de excessivamente ligado) desse outro.
É frequente acontecer em famílias em que um dos elementos tem consumos de substâncias (drogas ou álcool); aí, o indivíduo co-dependente emerge como o responsável pela “salvação” do seu outro significativo, o que tantas vezes se revela uma expectativa pouco realista ao longo do tempo. Mas a co-dependência não aparece apenas em torno do abuso de substâncias químicas. Por exemplo, se um dos meus pais é infantil, irresponsável, gasta todo o dinheiro que ganha, e eu sinto que tenho que tomar conta dele, controlar os seus passos, salvá-lo de si mesmo isso é ser co-dependente. Se o meu companheiro está permanentemente insatisfeito e infeliz e eu vivo para tentar animá-lo ou gratificá-lo, isso é co-dependência. No fundo, é deixar que a vida do outro se torne a minha vida, que o problema do outro se torne o meu problema e, muitas vezes, sem que a pessoa em questão faça alguma coisa para o resolver.
De uma forma geral, podemos enumerar assim os pontos-chave da problemática da co-dependência (ou dependência afectiva): a) Sentir-se responsável por outras pessoas – pelos sentimentos, pensamentos, acções, escolhas, desejos, necessidades, bem-estar, e até pelo seu destino; b) Sentir ansiedade, pena e culpa quando a outra pessoa tem um problema; c) Sentir-se compelido – quase forçado – a ajudar a resolver o problema; d) Ter raiva quando a nossa ajuda não é eficiente; e) Comprometer-se demais; f) Culpar o outro pela situação em que estamos; g) Achar que a outra pessoa está a levar-nos à loucura; h) Sentir raiva, sentir-se vítima, como se não tivesse liberdade de escolha.
Claro está que nem todas as forma de apoio e compreensão ­­­são problemáticas, porém, é preciso perceber se nos tornámos os principais responsáveis por quem não quer tomar conta de si mesmo. Esse é um lugar de grande sofrimento e que também não ajuda a resolver o comportamento patológico da pessoa-problema.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Reflexão no Sapatinho (em Dia de Reis)



No Natal passado especulou-se sobre o que estaria para chegar. Continuamos aqui, ainda inteiros, e depois de um ano de dificuldades, penso que podemos pensar sobre o outro lado da moeda, que mostra que estamos humanamente mais “crescidos”. Arriscando dizer que somos hoje menos individualistas, já que nunca como agora houve tanta consciência social. Repare-se no aumento exponencial de movimentos solidários de recolha e distribuição de alimentos, brinquedos, vestuário, livros, e tudo o mais que possa faltar numa casa de família. E não só a nível institucional, mas atitudes solidárias em pequena escala, que nascem do coração de alguns.
Sabemos de famílias que este ano produziram, criativamente, os seus próprios enfeites de Natal, recorrendo a materiais caseiros ou recolhidos na rua, trabalhando afincadamente na exploração de tintas, papéis e tesouras. Tudo o que é feito com as nossas mãos tem cheiro a afectos e com um carinho especial se orgulham dos seus enfeites mais do que de qualquer outro adquirido anteriormente num balcão alheio.
Parece também que todos reduziram a sua lista de presentes, que não só incluía a “prima da vizinha” (tantas vezes só para parecer bem) como também incluía presentes de valor o mais elevado possível (como se o valor fosse espelho do afecto nutrido pelo outro). Hoje procuram-se presentes mais adequados e em quantidade mais adequada. Sobretudo, é o acto de compra impulsiva que perde força este Natal. Pensa-se mais antes de agir. Mais, muitos fazem este ano os seus próprios presentes ao invés de comprar e há ainda quem prefira aderir a iniciativas de pequenos comerciantes ou artesãos. Porque prosperam negócios caseiros, de elevada qualidade e preço acessível, nascidos da necessidade e da criatividade de gente cheia de talento que nunca deu oportunidade a si mesma de pôr mãos ao trabalho e deixar a imaginação voar. Trabalhos de bijuteria, de costura, de culinária, de pintura e experiências a tantos níveis. Artesãos dos tempos de crise que talvez encontrem aqui, este Natal, a semente de uma ideia que venha a germinar no futuro.
Em poucos meses, e embora quase por obrigatoriedade, caiu por terra a atitude excessivamente consumista e passiva que coloriu o Natal dos últimos anos. E, curiosamente, não deixamos de sentir um “espírito natalício” por aí, que agora parece vir mais de dentro para fora e não tanto de fora para dentro. Nem tudo o que nasce no seio de uma crise é necessariamente mau, e assim, começando com um Natal mais humano, quem sabe depois esta postura possa ir entrando devagarinho pelas nossas casas, ensinando-nos um equilíbrio social e económico que poderíamos estar quase a perder de vista. 

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Marylin, O Mais Belo Fantasma do Mundo


 
"Ninguém podia adivinhar que se tratava de um fantasma. Ela era demasiado bonita para isso, demasiado doce, resplandecente. Uma aparição não tem calor, é um lençol frio, um tecido, uma sombra inquietante. Ela, ela encantava-nos. Devíamos ter desconfiado. Que poder tinha ela para nos fascinar tanto, para nos impressionar e nos levar à nossa maior felicidade? Deixamo-nos cair na armadilha a ponto de não compreendermos que já estava morta havia muito tempo.

Na verdade, Marylin Monroe não estava completamente morta, estava apenas um pouco, às vezes um pouco mais. O seu charme, ao fazer nascer em nós um sentimento delicioso, impedia-nos de compreender que não é necessário estar morto para não viver. Começara a não estar viva desde que nascera. A sua mãe, desumanamente infeliz, expulsa da humanidade por ter trazido ao mundo uma filha ilegítima, estava estupidificada de infelicidade. Um bebé não se pode desenvolver de outra forma que não seja no meio das leis inventadas pelos homens, e a pequena Norma Jean Baker, mesmo antes de nascer, encontrava-se fora da lei. A melancolia que sentia preenchia de tal forma o seu mundo que a mãe não teve força para lhe oferecer uns braços tranquilizadores. Foi necessário colocar a futura Marylin em orfanatos gelados e confiá-la a uma série de famílias de acolhimento entre as quais era difícil aprender a amar.

As crianças sem família não têm tanto valor como as outras. O facto de serem exploradas sexual ou socialmente não pode ser considerado um crime grave, uma vez que estes pequenos seres abandonados não são totalmente crianças verdadeiras. Algumas pessoas pensam assim. Para sobreviver apesar das agressões, a pequena Marylin teve de começar a “imaginar”, a alimentar-se da própria dor, antes de se afundar na melancolia e na loucura da sua mãe. Então, declarou que Clark Gable era o seu verdadeiro pai, e que pertencia a uma família real. Não tinha outra alternativa! Desta forma construía uma identidade vaga, já que, sem sonhos loucos, teria sido forçada a viver num mundo de lama. Quando a realidade morre, o delírio dá origem a uma maré de felicidade. Assim, casou-se com um campeão de basebol para quem cozinhava todas as noites cenouras e ervilhas , cujas cores tanto lhe agradavam.

Em Manhattan, onde tirou cursos de teatro, passou a ser a aluna preferida de Lee Strasberg, que era fascinado pelo seu estranho encanto. Já tinha estado morta muitas vezes. Era necessário estimulá-la bastante para que não se deixasse levar para o mundo dos mortos. Ela hibernava, não saia da cama e já não se lavava. Quando acordava com um beijo, de Arthur Miller, por quem se tornou judia, de John Kennedy ou de Yves Montand, reanimava-se, deslumbrante e afectuosa, e nenhum deles se apercebia de que tinha sido encantado por um fantasma. No entanto, ela dizia-o quando cantava I’m Through With Love. Estando já afastada do mundo dos mortais, refulgente em plena glória, sabia que só lhe restavam três anos de vida antes de oferecer a si própria um último presente: a morte.

Marylin nunca esteve completamente viva, mas nós não o podíamos saber, pois o seu fantasma era tão maravilhoso que nos enfeitiçava."

Boris Cyrulnik in O Murmúrio dos Fantasmas

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Obesidade


É um tema na ordem do dia e ainda propósito da Conferência Internacional de Obesidade Infantil, que decorreu em Oeiras entre 6 e 9 de Julho, entenda-se que a obesidade é uma doença que afecta os indivíduos fisicamente, psicologicamente e socialmente. Na sua origem estão diversos factores, tais como comportamento alimentar inadequado, doenças endocrinológicas, perturbações psiquiátricas, questões genéticas, ausência ou diminuição da actividade física, bem como factores emocionais.

Sabe-se, ainda, que a incidência da obesidade na infância tem vindo a aumentar em todo o mundo, aliás, “a nível nacional, 32,2% das crianças têm peso a mais e 14,6% enquadram-se já num quadro clínico de obesidade” (i, 06/07/2011). De relevar que, ao contrário do que muitas famílias pensam, a criança obesa não terá nenhuma facilidade em perder a gordura mais tarde. É por volta dos dois anos e meio que se define o número de células gordas do indivíduo. Assim, uma criança com excesso de peso possui maior número de células gordas do que uma criança com peso normal. Possuindo maior número de células gordas, o indivíduo terá mais dificuldade em ser um adulto magro.

A obesidade não é considerada uma perturbação do foro psiquiátrico, uma vez que está muito relacionada com causas orgânicas (distinguindo-se assim do grupo das Perturbações do Comportamento Alimentar). No entanto, encontra-se profundamente relacionada com factores emocionais, especialmente de natureza psicossomática (o corpo como veículo da mente). Quer no caso das perturbações do comportamento alimentar, quer da obesidade, estamos perante manifestações clínicas onde convergem, como principais factores emocionais subjacentes, a perspectiva psicossomática, os comportamentos aditivos (dependências) e, ainda, a depressão e a ansiedade.

A obesidade pode, em muitos casos, ser pensada como um sintoma. Um sintoma que consiste numa comunicação simbólica que esconde (mas ironicamente também revela) aspectos inconscientes de um conflito interno. A comida representa na maioria dos casos um fenómeno compensatório, profundamente inconsciente, muitas vezes utilizado como um recurso de contenção de um sofrimento, de uma angústia, de um vazio.

É muito importante poder compreender e desmontar esta doença, inclusivamente porque não podemos ignorar a circularidade que a envolve: há uma causa (explícita ou não) na origem da obesidade que, por sua vez, provoca ainda mais sofrimento, que potencia a perpetuação da obesidade. É igualmente importante não esquecer que a prevenção tem um papel fundamental. Felizmente, vivemos num concelho que faz, naquilo que sabe e pode, o seu papel, criando estruturas e iniciativas que incentivam e promovem o exercício físico e um estilo de vida saudável.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Cannabis e Cocaína


Em jeito de manual académico, sistematizemos algumas características das duas das substâncias mais consumidas em Portugal (segundo conclusões do Instituto da Droga e da Toxicodependência), a cannabis e a cocaína.

No que respeita à cannabis, como principais efeitos físicos associados ao consumo destaca-se o aumento da frequência cardíaca, congestão dos vasos conjuntivais (olhos vermelhos), dilatação dos brônquios, diminuição da pressão intra-ocular, foto-fobia e tosse. Como sintomas psíquicos verifica-se a euforia mas, além disso, relaxamento e sonolência. Os pensamentos fragmentam-se e podem surgir ideias paranóides. Há intensificação da consciência sensorial e maior sensibilidade aos estímulos externos. Há lentificação nas reacções e um défice na aptidão motora, bem como diminuição da memória imediata e da capacidade para a realização de tarefas que impliquem operações múltiplas. O seu potencial de dependência é diferente de outras drogas, contudo, provoca uma síndrome de abstinência leve (ansiedade, irritação, transpiração, tremores, dores musculares). O THC (componente activo) exacerba ainda a depressão e intensifica psicoses pré-existentes, estando também associado a problemas sociais e de relacionamento pessoal.

A cocaína, por sua vez, é uma substância associada à imagem de êxito social pois produz euforia, diminuição da fadiga e do sono, possível aumento do desejo sexual, redução do apetite, aumento da energia, maior auto-confiança (ou mesmo prepotência). Fisicamente, há tremores nas mãos, agitação, aumento da frequência cardíaca, aumento da tensão arterial, aumento da temperatura corporal e da sudação. À sensação de bem-estar inicial segue-se, geralmente, uma decaída caracterizada por cansaço, apatia, irritabilidade e comportamentos mais impulsivos. É a droga com maior potencial de dependência, provocando maior percentagem de adictos para um menor número de consumos. Chamam-lhe também a gulosa, pois devido à curta duração dos seus efeitos psicoactivos e ao rápido aparecimento de sintomas de abstinência, provoca um estilo de consumo compulsivo. É difícil falar em síndrome de abstinência com dores ou sintomas físicos (como na heroína), mas algumas alterações psicológicas são notáveis: hiper-sonolência, apatia, depressão, ideias suicidas, ansiedade, irritabilidade, intenso desejo de consumo. O mais grave no quadro de abstinência da cocaína é a enorme dificuldade em suportar a perda dessa euforia. É uma dependência psicológica que se reflecte numa ânsia compulsiva por sentir novamente o efeito (na língua inglesa encontramos a melhor expressão para este fenómeno, craving). Em qualquer um dos casos, na presença de situações de abuso destas substâncias (ou outras, note-se!), o mais importante será perceber o motivo que leva o indivíduo ao comportamento aditivo.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Nos bastidores da delinquência


Falou-se, aqui há uns tempos, em diminuir a idade da imputabilidade legal e talvez seja interessante pensar nas raízes da delinquência juvenil, tentando compreendê-la de modo a contê-la aos primeiros sinais. São histórias de violência, crime, toxicodependência ou alcoolismo. Mas são, sobretudo, “histórias de desamor”1).
É o amor, acima e primeiro que qualquer outra coisa, que permite a estruturação do psiquismo da criança. Na sua ausência, pode esperar-se o caos. É possível afirmar que os comportamentos delinquentes escondem uma “intensa desintegração psíquica”1). Perante a dificuldade em expressar as suas dificuldades emocionais, elas são agidas no mundo exterior. Pode dizer-se que, nestas crianças e jovens, a capacidade de mentalizar conflitos é muito frágil e estes muito mais facilmente manifestam-se, não pela palavra, mas pelo acto. E torna-se a violência a forma preferencial (ou mesmo a única possível) de comunicação, como um apelo gritante.
Nos bastidores deste cenário, detecta-se uma “falha básica”, um vazio interno (quase como um buraco) que pode existir na estrutura emocional do ser humano, quando as suas necessidades básicas não são preenchidas (um buraco tantas vezes preenchido em consumos de substâncias que produzem a sensação de plenitude e bem-estar que não podem nem sabem viver de outro modo). E procuramos mais fundo e possivelmente encontramos uma mãe emocionalmente frágil, que chega por vezes a ter de ser cuidada e maternalizada pelos seus filhos. Com certeza, mães com as suas próprias histórias e os seus respectivos fardos. Detecta-se ainda, frequentemente, a ausência de um pai e do que ele simboliza (o interdito, a figura de autoridade, a imposição de limites) para o desenvolvimento emocional da criança.
Estes “filhos de ninguém”1)  contam-nos que na outra face da delinquência se encontra a depressão. Simplesmente, nem toda a depressão se manifesta da mesma forma, nem toda se age violentamente (e quando virada para fora torna-se mais incómoda para os outros, sem dúvida). Há os se fragilizam e há os que endurecem, mas em comum têm que lhes faltou algo essencial. Em comum têm também que muitos nem se importam de morrer (vivendo já numa morte psíquica, no fundo) e nem demonstram sequer capacidade de sonhar.
Como resposta, encontram no fim (porque demasiado tarde) uma punição (mais um castigo). Pode assim reparar-se esta falha e imaginar mudanças? Não, não pode. “Encarcerar não faz esquecer. Nunca cura. Tapa, remedeia”1). Uma terapia pelo amor (nas palavras de Teresa Ferreira a psicoterapia é uma cura de amor e por amor) seria muito mais eficaz.

1) Strecht, P. (2003). À margem do amor. Assírio e Alvim.

domingo, 10 de abril de 2011

Dependências


No século passado, o consumo de drogas representava uma forma de libertação, numa sociedade que se apresentava castradora. As drogas fizeram parte de uma revolução ideológica mas, actualmente, são sustentadas e alimentadas por outros e diferentes factores. Hoje, a toxicodependência pode ser encarada como um sintoma do mal-estar social, nomeadamente, das dificuldades económicas, do desemprego e da crise da habitação. O consumo de substâncias funciona agora muitas vezes como válvula de escape de uma sociedade, nada castradora, mas competitiva e cada vez mais exigente. Mais, representa um sintoma da crise de valores vigente, reflectindo a passagem de uma sociedade centrada no cumprimento do dever para uma sociedade virada para a procura do prazer. É ainda, inquestionavelmente, resultado da sociedade consumista, que compensa, através do consumo (num sentido alargado), as frustrações e as dificuldades. O contexto sócio-cultural mudou, mas parece que as drogas vieram para ficar. Permanecem, reinventando-se, plásticas e maleáveis às exigências da evolução.
Também interessa perceber que os factores sociais por si só não bastam para compreender o fenómeno das dependências. Eles actuam em conjunto com as especificidades psicológicas de cada indivíduo. Considera-se que a toxicodependência é representativa de um conflito intrapsíquico, inconsciente, associado a relações familiares patológicas (onde a análise dos vínculos estabelecidos entre o indivíduo e os seus progenitores desempenha papel central na compreensão da dependência) e relacionado com debilidades nos processos de individuação e autonomização, como se observa tantas vezes pela análise da história de vida do indivíduo.
Existem ainda diferentes formas de consumo, com diferentes significados. Como tal, as razões que levam as pessoas a experimentar são diferentes das razões que as levam a ficar dependentes. Inicialmente, numa fase de experimentação, há um conjunto de factores que explicam o consumo (curiosidade, vontade de testar os limites, de pertencer a um grupo, desejo de diversão, medo da exclusão do grupo, disponibilidade da droga, ilusão da resolução de problemas). Depois, o indivíduo até pode manter-se num consumo recreativo, associado ao lazer e à diversão. Contudo, como se sabe, pode igualmente tornar-se numa dependência, último estádio dos consumos. O problema fundamental é que quando uma pessoa psicologicamente vulnerável se inicia nos consumos de substâncias altamente aditivas, o consumo passa a ser a motivação central na vida do indivíduo.
Nenhum tratamento de dependências é feito sem intervenção psicológica. Descobrir os factores que alimentam a adição é essencial. Trabalhá-los. E como objectivo último, diminuir a ligação à substância e aumentar a ligação à vida, devolvendo ao indivíduo a sua a liberdade, dignidade e autonomia.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Prioridade Nacional, por Pedro Strecht



"Estamos no início de um novo século e, se olharmos para trás, bem poderemos dizer que a história da infância é um pesadelo do qual ainda agora acabamos de acordar. Não é preciso ir longe para se recordar o que se passava na antiga Grécia, quando em Esparta alguns dos mais pequenos eram liquidados à nascença, ou para lembrar que grande parte da revolução industrial do século XIX foi conseguida à custa do trabalho infantil. De verdade, só os últimos 50 anos trouxeram progressos notáveis em políticas de protecção à infância, pese embora alguns paradoxos, demonstrados na atitude de países que ainda não assinaram a Declaração dos Direitos da Criança. Mas será que chega este interesse aparentemente crescente pelo bem-estar individual e social dos mais novos? Que diferença existe entre aquilo que hoje em dia sabemos e o que, de verdade, fazemos?
Em Portugal, apesar de inequívocos progressos das últimas décadas, a situação psicossocial dos mais novos continua muito mal, e resume-se no invariável último lugar entre os países da União Europeia (UE). O desenlace final de situações de risco possíveis de detectar desde o primeiro ano de vida move debates, reúne técnicos, envolve políticos que, contudo, se esquecem de aceitar que as raízes dos problemas estão muito mais atrás. Por exemplo, quase todos se preocupam com o consumo e tráfico de drogas, com os níveis crescentes de insegurança provocada pela escalada de delinquência juvenil, com a questão do analfabetismo funcional ou com o problema do aborto, como se tudo surgisse do nada. Por que custará assim tanto olhar um pouco mais fundo e perceber as ligações entre estas situações, que não só se iniciaram, como são previsíveis e detectáveis anos antes?
É possível que a causa desta cegueira social resida em dois aspectos essenciais: a dificuldade em ter acesso a informação e conhecimento que permitam analisar em profundidade os factos, e a terrível resistência em valorizar os primeiros anos de vida como a base da construção emocional individual. Dói ter acesso a uma parte da realidade que é preferível omitir, negando doses importantes de sofrimento alheio, tanto mais quanto ele possa existir nos mais novos. É um jogo de eterno “faz de conta”: “faz de conta” que o problema da droga é com os outros, ou que o meu filho só nele se iniciará se tiver más companhias, ou “faz de conta” que delinquência é um mal que só ataca negros suburbanos e que, portanto, se resolve com uma política de emigração mais dura. Mas este é um jogo muito perigoso: esconde, adia, pretende recalcar algo que se não for resolvido na origem, continuará a existir.
Actualmente, existem em Portugal cerca de 22 mil crianças e adolescentes a viver em instituições, de forma temporária ou definitiva, sendo que grande parte desses locais luta contra dificuldades de recursos humanos e económicos inimagináveis. É triste saber de um número tão grande de “esquecidos” cujo projecto de vida será nulo ou inconsistente, por incapacidade de pais e familiares cuidarem dos seus filhos. (...)
Da escola sai anualmente um número enorme de alunos, antes do final do 9º ano ou dos 16 anos de idade, tempo de escolaridade obrigatória. Com taxas brutais no início do 2º ciclo, para onde vão aqueles que não progridem na escola? Simplesmente para a rua, ou para várias formas de trabalho infantil, para o qual não estão qualificados e, muito menos, protegidos. Os números apontam para 18 mil (segundo dizem os pais) ou 43 mil (conforma versão dos filhos) que continuam assim a ser explorados. Obviamente que aqui não se incluem os que passam ao lado da estatística, como por exemplo os que engrossam os números da prostituição feminina ou masculina.
Quanto aos que permanecem na escola, os resultados também não animam. Os números da iliteracia funcional são muito grandes. As dificuldades concretas da matemática ou da língua portuguesa, uma constante.
Mas é também no grupo dos mais novos que continua a ser crescente a taxa de consumo de substâncias tóxicas, como o álcool ou as drogas. Não se imagina o número daqueles que, independentemente do estatuto social, cedo começa a abusar destas substâncias.
Vem depois a questão da maternidade adolescente, onde ocupamos o segundo lugar, logo atrás do Reino Unido. Mas se forem apenas contabilizadas as raparigas até aos 16 anos, somos os primeiros. Não é difícil imaginar que mães adolescentes se constituem num maior risco para os bebés, dada a imaturidade emocional de muitas, a falta de amparo familiar e social de tantas, e até o próprio facto de estes bebés serem muitas vezes gerados debaixo de complicadas projecções negativas. Faltaria dizer que esta é a realidade da maternidade adolescente; mas quanto ao número de gravidezes que ocorre, nada sabemos, dada a impossibilidade de se contabilizarem os abortos clandestinos que são feitos como forma de contracepção.
Resta a questão da infecção pelo VIH/SIDA. Portugal é o único país da UE que mantém um aumento de número de infectados, à custa da população heterossexual e toxicodependente.
Cuidar dos novos não pode ser mais uma questão esquecida. É, hoje em dia, uma prioridade nacional, independentemente de qualquer orientação política. Caso contrário, estaremos a desperdiçar o potencial de gerações inteiras. O grau de desenvolvimento de um país também se mede pela forma como protege e estimula as suas crianças e adolescentes!
Para que a mudança seja possível, faz falta o que sempre faltou: conjugação de vontade política, disponibilidade económica e conhecimento científico. Sem isso, a nossa cultura de infância é um puro esquecimento. Ou pior, uma tremenda ignorância. E isso é tudo o que não podemos desejar."  

(Pedro Strecht, in Olha por Mim)

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Usos e abusos


Temos conhecimento através de inúmeras reportagens e, também por fácil observação directa que, actualmente, os jovens iniciam as suas experiências a diversos níveis cada vez mais cedo. No que toca às experiências de consumos, assume-se que é grave, pois a sede de conhecer e experimentar parece que cedo se transforma em fascínio. Estamos perante pré-adolescentes que, com total liberdade, acedem a estabelecimentos nocturnos onde constatamos os ditos consumos exacerbados de substâncias variadas pela noite fora. De facto, parece estar a aumentar um novo tipo de dependência, que poderíamos chamar “dependência de fim-de-semana”, caracterizada pela incapacidade de obter prazer e diversão nas saídas com os amigos sem ser através do abuso de substâncias e consequente alteração dos estados de consciência.
Porquê? Talvez se possa enquadrar esta questão na sociedade de consumo e de busca de prazer imediato, visto a maioria destas substâncias tornar a socialização mais fácil e assim ser mais rápido conhecer novas pessoas e criar novas relações. No entanto, embriagados por tanta coisa, as amizades esbatem-se por entre conhecimentos fugazes e superficiais, as experiências de carácter sexual adivinham-se precoces e tantas vezes sem significado, as relações amorosas nascem através de conhecimentos rápidos e tornam-se mais voláteis. Não se pensa muito e faz-se demasiado. A consciência está alterada, é compreensível..! É a força do agir acima de tudo o resto.
Os pais destes adolescentes, observam de longe, alguns tolerantes e compreensivos, desdramatizando. Outros, redondamente iludidos, pois durante a semana o seu filho comporta-se normalmente, estuda e até tira resultados bons ou razoáveis na escola, logo isso basta para acreditarem que quando está com os amigos seja um menino “às direitas”. Errado. Estes adolescentes estão a perder a capacidade de apreciar a vida de olhos límpidos. Sem álcool, sem haxixe e quiçá sem outras coisas, numa pequena minoria, não tem tanta piada estar com os amigos. Pior ainda, a falta de moderação. Caídos pelos cantos, tantas vezes. O seu corpo, ainda em crescimento, irá reflectir mais tarde estes excessos. Também o seu rendimento escolar poderá baixar, mais tarde, devido não só à deterioração das capacidades intelectuais mas também à desmotivação e apatia que gradualmente cresce nestes pequenos jovens que anseiam apenas por mais uma noite de excessos. Experimentar faz parte da vida e dificilmente poderemos contrariar a tendência das experiências cada vez mais precoces. Contudo, temos a obrigação de chamar estes meninos, que se acham grandes, à realidade, mostrando-lhes que a vida é bonita sem ser necessário consumir com tanta sofreguidão. Que a capacidade de não perder o prazer das pequenas coisas vale mais que tudo.