Mostrar mensagens com a etiqueta Poesia. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Poesia. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 10 de abril de 2015

D'Os Passos em Volta

Series Seven Chair by Arne Jacobsen
“- Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, Às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro… Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida… compreende?… a nossa vida, a vida inteira, está ali como… como um acontecimento excessivo… Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e a violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-lo a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?
Uma vez fui a um médico.
– Doutor, estou louco – disse. – Devo estar louco.
– Tem loucos na família? – perguntou o médico. – Alcoólicos, sifilíticos?
– Sim, senhor. O pior. Loucos, alcoólicos, sifilíticos, místicos, prostitutas, homossexuais. Estarei louco?
O médico tinha sentido de humor, e receitou-me barbitúricos.
– Não preciso de remédios – disse eu. – Sei histórias tenebrosas acerca da vida. De que me serve barbitúricos?
A verdade é que eu ainda não havia encontrado o estilo. Mas ouça, meu amigo: conheço por exemplo a história de um homem velho. Conheço também a de um homem novo. A do velho é melhor, pois era muito velho, e que poderia ele esperar? Mas veja, preste bem atenção. Esse homem velhíssimo não se resignaria nunca a prescindir do amor. Amava as flores. No meio da sua solidão tinha vasos de orquídeas.
O mundo é assim, que quer? É forçoso encontrar um estilo. Seria bom colocar grandes cartazes nas ruas, fazer avisos na televisão e nos cinemas. Procure o seu estilo, se não quer dar em pantanas. Arranjei o meu estilo estudando matemática e ouvindo um pouco de música. João Sebastião Bach. Conhece o Concerto Brandeburguês n.º 5? Conhece com certeza essa coisa tão simples, tão harmoniosa e definitiva que é um sistema de três equações e três incógnitas. Primário, rudimentar. Resolvi milhares de equações. Depois ouvia Bach. Consegui um estilo. Aplico-o à noite quando acordo às quatro da madrugada. É simples: quando acordo aterrorizado, vendo as grandes sombras incompreensíveis erguerem-se no meio do quarto, quando a pequena luz se faz na ponta dos dedos, e toda a imensa melancolia do mundo parece subir do sangue com a sua voz obscura… Começo a fazer o meu estilo. Admirável exercício, este.(…)”

Herberto Helder, Os Passos em Volta (Assírio e Alvim), pp. 9-11

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Morrer de Amor


"Tão bom morrer de amor! e continuar vivendo..."
— Mário Quintana, Conversa Fiada in Baú de Espantos (1986)

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Fevereiro

Escute só.
Isto é muito serio.
Ande,
escute que isto é sério.
O mundo está tremendamente esquisito.
Há dez anos atrás o Li** disse que existe uma rachadura em tudo
e que é assim que a luz entra
não sei se entendi.
(…)
O amor é um animal tão mutante,
com tantas divisões possíveis...
Lembra daqueles termómetros que usávamos na boca
quando éramos pequenininhos?
lembra da queda deles no chão?
então,
acho que o amor quando aparece
é em tudo semelhante à forma física do mercúrio no mundo
quando o vidro do termómetro se quebra,
o elemento químico se espalha,
e então ele fica se dividindo pelos salões de todas as festas
mercúrio se multiplicando…
acho que deve ser isso uma das cinco mil explicações possíveis para o amor.
Ah, é..
Eu gosto de você...
A luz entrou torta por nós adentro,
Mas olhe..
Eu gosto de você..
(…)
Hoje ainda faz bastante frio.
(...)
A esta hora na Terra é metade Carnaval, metade conspiração,
metade medo, metade fé,
metade folia, metade desespero,
E provavelmente, a esta hora,
uma metade do mundo está dançando, e a outra metade dormindo.
(...)
Eu acredito que agora exista alguém profundamente acordado.
(...)
Escute, isto é serio.
Andamos crescendo juntos, distraidamente.
As árvores crescem connosco.
Nossa pele se estende.
Nosso entendimento teso, também.
(...)
Quanto ao um para um entre nós dois, isso logo se vê.
Não sei nada sobre a paixão,
suspeito que você também não.
Mas começo a entender que o compasso da fé está mudando a passos largos:
dois para lá,
e dois para cá.
portanto, escute, isto é muito sério.
Isto é uma proposta ao trinta anos.
Agora que o mercúrio assumiu sua posição certa,
vem comigo achar o metrónomo mágico entre a folhagem.
E no caminho até lá,
vem dançar comigo,
vem.

― Matilde Campilho


https://www.youtube.com/watch?v=VasLnEWnAxY

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

A dor que me deixaste


Há dores que os outros depositam em nós por não terem capacidade para tomar conta delas. Podemos guardá-las durante algum tempo, podemos tentar transformá-las em algo bom, mas nem sempre é possível. E quando assim é, quando o outro apenas tem para nos dar a sua dor e nada mais, quando o nosso único lugar é não ter lugar, chega a hora de partir. 

― O poema (em prosa) encerra a caminhada de dolorosa consciencialização e libertação, in "a dor que me deixaste" da querida e única Maria João Saraiva.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

A Beleza das 'Cousas'


Se o que é belo para uns nunca será belo para outros, sendo a beleza um dos conceitos mais subjectivos e voláteis da humanidade, o que é o belo senão aquilo que nos faz felizes? O poema — Alberto Caeiro, com certeza. 

domingo, 7 de setembro de 2014

Muitos mergulhos e poucas respostas

O Verão, rapazes ― como disse C. Adams ― 
implica uma insistência nos mergulhos
e uma desistência breve das respostas.
Importante é passar a mão pelas escarpas, 
afagar o pescoço das andorinhas do mar,
verificar o oxigénio no tubinho de plástico
que ajuda a respirar na cala azul turquesa
e permitir que o Senhor ressuscite o sangue
dos espadartes todas as manhãs de 29ºC.
Estas são as tarefas que devem ser realizadas

e ― como disse Adams ― bom mesmo é chegar
ao fim da estação sem nenhuma resposta.

― Matilde Campilho, Um coração que mora dentro do olho do jaguar

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Metáforas Deliciosas

lembra daqueles termómetros que usávamos na boca
quando eramos pequenininhos?
lembra da queda deles no chão?
então, acho que o amor quando aparece
é em tudo semelhante à forma física do mercúrio no mundo
quando o vidro do termómetro se quebra
o elemento químico se espalha
e então ele fica se dividindo pelos salões de todas as festas
mercúrio se multiplicando
acho que deve ser isso uma das cinco mil explicações possíveis para o amor


(Matilde Campilho, fevereiro) 

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Matilde Campilho


Há neste planeta chamado Terra uma mulher com ar de menina que tem uma sensibilidade de outra galáxia e uma maneira deliciosa de a verter para palavras. Tem um videopoema que diz: 

"É terrível a existência de duas rectas paralelas
Porque elas nunca se cruzam
E elas apenas se encontram no infinito"


E então eu digo ainda bem que não foi preciso esperar pelo infinito para a encontrar. Abençoadas as perpendicularidades da minha
vida!

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Pedrinha (Do Medo)


O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Alexandre O’Neill
in Abandono Vigiado (1960)

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Todas as Palavras



As que procurei em vão, 

principalmente as que estiveram muito perto,

como uma respiração,

e não reconheci,

ou desistiram e

partiram para sempre,

deixando no poema uma espécie de mágoa

como uma marca de água impresente;

as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te

nem foram capazes de dizer-me;

as que calei por serem muito cedo,

as que calei por serem muito tarde,

e agora, sem tempo, me ardem;

as que troquei por outras (como poderei

esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);

as que perdi, verbos e

substantivos de que

por um momento foi feito o mundo.

E também aquelas que ficaram,

por cansaço, por inércia, por acaso,

e com quem agora, como velhos amantes sem

desejo, desfio memórias,

as minhas últimas palavras.

Manuel António Pina

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Poesia



É fácil trocar as palavras,

Difícil é interpretar os silêncios!

É fácil caminhar lado a lado,
 
Difícil é saber como se encontrar!

É fácil beijar o rosto,

Difícil é chegar ao coração!

É fácil apertar as mãos,

Difícil é reter o calor!

É fácil sentir o amor,

Difícil é conter sua torrente!

Como é por dentro outra pessoa?

Quem é que o saberá sonhar?

A alma de outrem é outro universo

Com que não há comunicação possível,

Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma

Senão da nossa;

As dos outros são olhares,

São gestos, são palavras,

Com a suposição

De qualquer semelhança no fundo.

 

Fernando Pessoa

quinta-feira, 12 de abril de 2012

quarta-feira, 21 de março de 2012

Dia de Poesia


Sossega, coração!
Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperença a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!
Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solente pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.

Fernando Pessoa

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Tormentos

“O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que nem eu mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que se não sente bem onde está, que tem saudades… sei lá de quê!”

(Excerto retirado de uma carta escrita por Florbela Espanca a 10 de Julho de 1930 e enviada a Guido Battelli).

terça-feira, 24 de janeiro de 2012