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terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Psicodiversidade


"A psiquiatria biológica, de mãos dadas com a indústria farmacêutica, até descobriu uma fórmula para quebrar os afoitos: são as crianças hiperativas, os adolescentes borderline e os adultos bipolares. Eu suponho que fui isso tudo. Tive a sorte de não ir aos psiquiatras. E viva!, dizem muitos, a biotecnologia supressiva. Porque, no fundo, a psicodiversidade é um perigo para a ordem constituída. O problema está em que este jovem difícil encontre um outro objeto, um analista ou professor, que possa não responder como responderam os objetos do passado: os pais, a polícia, a sociedade, etc."

— Excerto do documentário "Percursos com António Coimbra de Matos" (Climepsi Editores)

sábado, 5 de março de 2016

Beijos dão-se a quem os quer

The Kiss, 1891, Mary Cassat

Chegou ao pé de mim e baixei-me para lhe dar um beijinho, ao que ele não correspondeu. Aliás, encolheu-se, parecia incomodado. Mais tarde, a sós, perguntei-lhe se gostava de beijinhos. Disse-me que não. Desde então, cumprimento-o com um olá e um sorriso. Beijos só se dão a quem os quer.
Embora muitos miúdos gostem de beijinhos e abraços, uma outra parte das crianças não gosta de ser tocada como forma de cumprimento. Entre adultos, e particularmente em Portugal, generalizou-se este cumprimento, mais informal. Mas não é por acaso que em muitas culturas o beijinho só é bem recebido a partir de um determinado grau de intimidade. “Dá um beijinho à tia Maria”, ordenam-lhe os pais, quando chega aquela mulher estranha, que nunca viu na sua vida. Que raio, mas porquê? “É uma questão de boa educação”, respondem-lhe. Mas onde está escrito que a boa educação implica distribuir beijos quando não nos apetece? O beijo forçado é um gesto extremamente intrusivo. O corpo é da criança, não é de mais ninguém.
Quando uma criança demonstra claramente não gostar de dar ou receber beijos ou abraços é suposto haver respeito. Para que ela saiba que tem o direito de escolher quem a abraça, quem a beija e quem a toca. Para que aprenda que o seu corpo não tem de servir as convenções ou o interesse alheio. Quando expomos  uma criança a estes abusos estamos a passar a perigosa e errada mensagem que a criança “boazinha” e “bonita” é aquela que se permite ser tocada, aquela que expressa educação e simpatia através do contacto corporal; que a criança “boazinha” e “bonita” e, consequentemente, aceite e aprovada pelos outros, é aquela que não coloca limites sobre seu próprio corpo. O desrespeito surge também sob a forma de chantagem emocional: “Não gostas de mim?”, perguntam. Estão a confundir tudo, o afecto não se mede aos beijos. E se a pessoa está carente de beijos, pode sempre arranjar um namorado.
Ainda que seja com a melhor das intenções, obrigar uma criança a dar um beijo é violento. Que responda, que cumprimente, sim. Beijar ou abraçar, no interesse de quem? Se a criança quiser dar beijinho, dará. Se a criança diz que não quer, que não lhe apetece, ou simplesmente vira a cara, não o levemos a peito. A criança tem direito ao seu espaço, à sua intimidade e ao controlo do seu corpo. O corpo de uma criança tem de ser tratado com muito respeito. Embora ela precise de nós na relação com ele (tomar banho, vestir-se) se ela começa a colocar limites (querer tomar banho sozinha, querer vestir sozinha, não querer ser abraçada) há que começar a pensar sobre isso. No que respeita à nossa intimidade, “não” significa “não”, em qualquer idade. E só se nos respeitarem poderemos também aprender a respeitar o outro.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Intervalo de Vinte Minutos Para Sonhar



 Passados quinze anos da entrada no séc. XXI, desenham-se com maior nitidez aqueles que são os grandes desafios e paradoxos da actualidade: olhamos cada vez mais atentamente as questões dos direitos humanos mas somos reféns de um mundo extremamente orientado para o dinheiro; intuímos que essa sociedade “devoradora” em grande parte nos conduziu a uma dívida que é hoje dona e senhora de nós mas não encontramos caminho fácil para consumir menos e/ou produzir mais; tentamos não esquecer de que somos uma espécie gregária enquanto nos debatemos com um isolamento tecnológico cada vez mais refinado; apregoamos a tolerância mas sentimos uma violência latente em pensamentos, palavras e actos em nosso redor (e por isso queremos abrir os braços a quem precise mas receamos abraçar um agressor).
Perante a força esmagadora desses desafios do mundo concreto, não podemos perder de vista a importância de um espaço que nos ajude a pensar e a sonhar. Esse espaço cria-se, nas sociedades, através das artes, da cultura e da educação — universo sensível. Esse universo sensível é também algo que liga as pessoas, na medida em que está muito enraizado na tradição europeia e é, de certa forma, uma identidade: pertencemos a um continente-berço de pensadores e de fortes movimentos artísticos e culturais. É também uma força: em tempos de fractura, tudo o que promova a coesão e a integração é de preservar.
Embora o nosso país seja hoje mais alfabetizado do que há muitos anos atrás e o acesso às artes e à cultura seja hoje feito sem censuras ou grandes limitações, há uma espécie de anestesia generalizada no que trata a políticas de apoio e crescimento nestas áreas. E um país que não investe na arte e na cultura é um país que embrutecerá rapidamente. Ali não frutificarão novas ideias, pois a criatividade é abortada à nascença, com os habitantes adormecidos entre extratos bancários e folhas de cálculo. O ser humano não vive só de números mas também de sonho. É fácil cair na tentação de colocar as artes e a cultura num plano secundário: o que importa é pagar as contas e ter comida na mesa. Porém, se não se despertam os sentidos, a alma definha. As artes e a cultura são o alimento do espírito de um povo: para além da possibilidade de se maravilhar, é nesse espaço de sonho que podem surgir pensamentos críticos. É, como diria Raul Brandão, um “intervalo de vinte minutos para sonhar”.
As artes e a cultura, seja sob a forma de música, de pintura, de literatura, de cinema, de teatro ou de qualquer outra manifestação de criatividade, são porta de entrada do pensamento divergente, e assim o mundo “pulula e avança”. Ao mesmo tempo, permite um certo encantamento que nos distrai da realidade, por vezes tão dura. Sobre isso já Nietzsche dizia que “temos a arte para não morrer da verdade”. De facto, lemos as notícias ou ouvimos os telejornais e somos imediatamente sufocados com doses maciças de realidade. Não precisamos nem devemos fugir da realidade, ou seja, não se trata de oferecer “circo e bolos para enganar os tolos”, trata-se sim de reservar espaço na nossa mente para aquilo que é belo: seja lá o que isso for para cada um de nós.


quarta-feira, 30 de julho de 2014

Higiene Mental Familiar


Num momento em que a prioridade é segurar o mais possível a capacidade económica da estrutura familiar há frequentemente uma diminuição acentuada da disponibilidade dos pais para os seus filhos, por falta de tempo e/ou falta de paciência. Mas apesar das dificuldades serem reais, desde o início dos tempos que com menores ou maiores dificuldades sempre houve famílias mestras em pôr o afecto 'na mesa' em qualquer circunstância, pelo que a 'crise' nem sempre é desculpa. Assim, não custa lembrar que ser pai e ser mãe é profissão a tempo inteiro e que cabe aos pais unir a família (o investimento é, primeiro, de pais para filhos), desenvolvendo os esforços necessários para que os filhos usufruam a boa companhia dos pais e os pais da companhia dos filhos. 
Porque “perdemos” tanto tempo a falar e a pensar nas famílias e nas crianças? Não é só porque as crianças de hoje são as mais protegidas de todos os tempos. É também porque hoje sabemos que pensar nas crianças é pensar na evolução da humanidade e no que está para vir. Toda a saúde mental passa em primeiro lugar pela saúde mental infantil. E no que respeita às nossas crianças, esta higiene mental pratica-se em casa e na escola. Sempre tendo em conta que, sem as condições emocionais minimamente satisfeitas (o que varia de caso para caso), não há possibilidade de uma boa integração e aprendizagem na escola. Os preconceitos ditam, ainda, que muitos educadores (não todos!) pensem que as dificuldades da criança na escola assentam em uma de duas hipóteses: incapacidade intelectual ou preguiça do aluno. E num mundo cada vez mais competitivo é tentador cair na ilusão de uma educação para o sucesso em detrimento de uma educação para os afectos.
Que se perceba que só uma árvore bem nutrida e enraizada em solo fértil dá os melhores frutos. Uma alfabetização emocional antecede obrigatoriamente o percurso académico. Para que as crianças integrem a leitura é necessário que tenham tido a possibilidade de aprender a relacionar-se com o mundo, ligando percepções, pensamentos e afectos, antes de aprender a ligar as letras. Ler à nossa volta. Para aprenderem a fazer contas é preciso que possam “subtrair” e “dividir” sem medo de ficarem sem nada ao sentirem que já têm pouco. Afecto, atenção, disponibilidade.

Quando os momentos em família se resumem a uma correria para o banho, trabalhos e jantar, um dia após o outro, sobra pouco tempo para os laços familiares. O lazer em família deve ser encarado com o mesmo respeito que qualquer outra tarefa do quotidiano. Porque um passeio, um jogo de futebol, um desenho, andar de bicicleta ou um mero ataque de cócegas de vez em quando dão força e entusiasmo às crianças para crescer afectivamente mais estruturadas e esse é o único caminho para que mais tarde possam enfrentar os obstáculos com a barriga cheia de amor, coragem e confiança. As crianças precisam sentir que são importantes na vida dos seus pais. O alimento para a alma é tão importante que todas as crianças prefeririam passar mais tempo com os seus pais em detrimento de outros bens materiais. Uma família unida por laços de afecto e pelo prazer em estar na companhia uns dos outros será a força motriz para enfrentar tudo o que está para vir. 

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Uma Psicanálise do Encontro Educativo

“O diálogo que me foi construindo como profissional, assente numa dupla filiação em Psicanálise e Educação, devo-o certamente a João dos Santos e aos momentos em que nas salas da Universidade, ainda na Pinheiro Chagas, nos encontrávamos com ele, uns com os outros e com a Psicologia. Nesses encontros João dos Santos fazia entrar sem cerimónia o mundo grande, a complexidade e o enigma, a cultura e a educação, a escola e a infância, a pedagogia e a terapia, a psicanálise e a importância de nos questionarmos a nós próprios.
É uma curiosa e feliz coincidência que o ano de nascimento de João dos Santos (1913) seja o ano em que Sigmund Freud publicava o seu trabalho “O interesse da Psicanálise”, apontando nesse magnífico texto o denominador comum entre a Psicanálise e a Educação: o facto de ambas reconhecerem a importância decisiva da infância na evolução do homem. Escreve então : ” A Psicanálise viu-se obrigada a fazer derivar a vida psíquica do adulto da vida psíquica da criança e a tomar a sério o adágio popular de que a criança é o pai do homem. Estudou a continuidade da psique infantil no adulto, identificou as transformações e as mudanças que se cumprem nesse caminho e encontrou a confirmação do que já havíamos frequentemente pressentido: a extraordinária importância, para todo o curso ulterior da vida do homem, das suas experiências infantis e em particular das que ocorrem nos primeiros anos da infância (…) A contribuição principal da Psicanálise para a educação é o reconhecimento da importância da Infância”.
É também neste texto de 1913 que podemos ler: «O maior interesse da Psicanálise para a Ciência da Educação funda-se sobre um enunciado que se tornou evidente, o de que não pode ser educador senão aquele que pode sentir do interior a vida psíquica infantil e quando nós, adultos, não compreendemos as crianças é porque deixámos de compreender a nossa própria infância».
Como que respondendo a este desafio, João dos Santos, psicanalista e pedagogo, pioneiro do diálogo entre a Psicanálise e a Educação em Portugal, torna o enunciado freudiano o fundamento da sua obra convidando cada adulto e nele cada educador a encontrar-se com  a criança que guarda dentro de si para que, sentindo do interior a vida psíquica infantil,  possa  encontrar-se com a criança e educar… Educar, é oferecer-se como modelo (JS).
Educação designa simultaneamente um processo e o resultado desse processo. O processo consiste num trabalho de formação pelo qual a criança é chamada a desenvolver as faculdades que a definem como ser humano e o produto deste trabalho de formação, a bem dizer interminável, é a realização no sujeito das características constituivas dessa humanidade. Sabemos que o processo educativo implica um campo de influências múltiplas e recíprocas entre adultos – pais, professores, educadores – crianças e adolescentes e que o caminho da educação é pontuado por encontros que vão permitindo a construção do ser e o seu desenvolvimento. No coração do desenvolvimento está a relação. A complexidade desta relação é tal que é difícil de dizer o que nela age e o que ela transforma, mas que é da ordem do encontro, parece indubitável. E se é bem verdade que todo o encontro humano é um enigma, não temos hoje qualquer dúvida de que os agentes de transformação são as pessoas e não as estruturas. No coração do desenvolvimento está a relação e  é também a relação que está no coração do encontro educativo: “Só se educa quando uma relação humana se estabelece, se desenvolve e se confirma na intimidade de cada uma da crianças e adultos em presença” (JS).
Marcel Postic no seu livro A relação pedagógica esclarece: “A relação pedagógica torna-se educativa quando em vez de se reduzir à transmissão do saber, compromete as pessoas em presença num encontro onde cada um descobre o outro e se vê a si mesmo e onde começa uma aventura humana pela qual o adulto vai nascer na criança. João dos Santos não se cansa de o lembrar: “Educar é basicamente estabelecer uma relação, a relação implica que o objeto de amor seja investido. Aquele que faz o primeiro movimento deve ter disponibilidade para receber as descargas afetivas no esboço de comunicação que se estabelece. A comunicação define-se como energia que passa num certo sentido e no sentido inverso (…) “A pedagogia e a didática funcionam melhor quando são instrumentos de comunicação reciproca”(…). No plano pré-educativo da relação básica, como no plano da educação, a relação deve ser entendida como uma disponibilidade afetiva para dar e receber amor terno e amor agressivo” (JS).
Parece-me que a formação de educadores e professores dever dar uma prioridade absoluta à relação pedagógica, pois que o trabalho educativo é essencialmente um trabalho de ligação. É um trabalho que se inicia sempre por uma ligação humana, a partir da qual se torna possível levar o aluno a estabelecer ligações com os objectos mais distantes que constituem a cultura e os saberes. Toda a relação é sustentada e animada por processos de identificação recíproca ou mútua e o encontro educativo não foge a esta regra: ao desejo de apropriação por parte do educando tem que corresponder um desejo de dádiva do educador. O educador/professor oferece-se como objeto desejável de aprendizagem e o educando como objeto desejável de educar. “O encontro não é só obra do acaso, é também obra da disponibilidade recíproca daqueles que se encontram. O encontro depende da convicção do que de perene existe nos nossos semelhantes” (JS).
Na relação com os outros, mesmo que mediada pela transmissão de um conhecimento, como é o caso da escola, não estamos nunca desimplicados, estamos com a nossa história, feita a nossa pessoa. Cada um de nós sabe-o, sentiu-o, experimentou-o. Basta que evoquemos o nosso passado escolar para que surja toda a gama de sentimentos que tecem a relação com a aprendizagem: angústias e alegrias, entusiasmos e deceções, proximidade e afastamento, adesões e ruturas. A escola está em cada momento e em cada sala cheia de fenómenos afetivos, de narrativas de vida silenciosas, que uns e outros contam, escutam e às quais respondem. Cada momento de ensino/aprendizagem é a história de um encontro, mais ou menos conseguido, entre um professor, um aluno e um saber. Cada actor em cena quando convoca o saber, convoca igualmente em cada um dos seus actos toda a sua pessoa, uma história de vida e um projecto de vida, melhor ou pior sucedidos, uma memória implícita, activa, representações, sentimentos, valores, uma ideia de humano, de criança, de adulto, uma ideia de crescimento, uma ideia de aprendizagem, expectativas, dúvidas, paixões, violências, desilusões, sucessos e frustrações, desejos de reconhecimento, pulsões construtivas mas igualmente pulsões destrutivas de domínio e de controlo. Uma tal implicação é em si mesma constitutiva do encontro e, sendo inevitável, longe de ser inoportuna é mesmo útil e desejável. Não encontramos os outros e os outros não se encontrarão connosco senão através da nossa presença e autenticidade.
“Não existe, nem creio que alguma vez exista, uma forma exata de educar, pois que a sociedade está constantemente a evoluir e a sua própria evolução implica a negação pela juventude da validade dos princípios educativos imposta pelos antecessores. Não existem educadores perfeitos, e quando há pretensos educadores perfeitos, os seus produtos são casos patológicos” pensava João dos Santos, e tudo quanto aconselhava, no estado atual dos nossos conhecimentos, precisava, era que “cada um eduque com verdade e espontaneamente e que os educadores sejam personagens reais e não autómatos eruditos e sofisticados (…) Se a educação pode ser encarada como um fenómeno cultural que orienta o diálogo com o educando e os outros educadores, a ação educativa deve sempre basear-se na relação espontânea, afetiva e instintiva pois que quem educa são as personagens verdadeiras e não as figuras ideais. Não se educa com teorias mas com princípios e preconceitos adquiridos na experiência e no convívio familiar e comunitário, não sendo a educação uma matéria que se ensine, mas fundamentalmente uma atitude que reflete o confronto entre as vivências do educando que fomos com o educador que pretendemos ser” (JS).
Que educadores pretendemos ser?
Escolhermos ocupar-nos de crianças ou jovens é reencontrar a nossa própria infância e juventude. Mesmo que não guardemos recordações conscientes, não  deixamos de ser menos habitados por essas idades pois foi lá que nascemos para para a relação, para a percepção de nós e dos outros. Cada educador revive e transpõe afetos e sentimentos com origem em lugares do seu passado (mas nem por isso menos presentes e atuantes no seu mundo interno) para os lugares e relações do presente e também para a sua relação com o conhecimento e com cada um dos seus educandos, dos seus alunos. Este é um dos maiores contributos da Psicanálise para as Ciências da Educação e aquele que João dos Santos, como psicanalista do encontro educativo, permanentemente nos lembra. Em cada uma das suas histórias – contador de histórias como gostava de se apelidar – fala-nos deste Outro em nós, desta nossa parte de enigma, irracional e secreta “Toda a pessoa guarda um segredo e o segredo do homem é a própria Infância” eda sua influência nas relações que estabelecemos. Este Outro, dimensão Inconsciente na terminologia psicanalítica, é o que nos move, o que permanentemente nos escapa e o que teima em reaparecer em cada um dos nossos encontros educativos. É importante conhecê-lo, dizendo de outro modo, é importante que nos conheçamos.
“A motivação para os problemas da criança, escreve João dos Santos, reside na própria infância de cada um, a experiência infantil acompanha-nos pela vida fora, e assim, podemos admitir que, tal como a Obra tem uma estrutura de base e toda a construção um alicerce, também a personalidade tem uma base ou alicerce, que é a infância. Tal como o edifício depois de acabado, retocado e experimentado não pode dispensar os alicerces, também a pessoa não pode mentalmente anular a experiência e as vivências da sua criação. As pessoas adultas equilibradas guardam saudavelmente certos factos infantis ou juvenis. O adulto vê a infância e juventude do outro através do imago que ele se fez da sua própria infância e juventude, para se rever nas suas aspirações bem-sucedidas ou para reagir contra o fracasso das suas rebeldias. O educador pensa em termos daquilo que deve ser mas, com frequência, aquilo que o educador acha que deve ser corresponde à maneira como ele próprio se organizou, quando criança ou jovem, de acordo ou em desacordo com aquilo que lhe impuseram” (JS).
Como Ciência do Humano a Psicanálise procura dar voz a este Outro, escutando a dinâmica do mundo interior, as experiências e personagens que o habitaram e habitam, trazer compreensibilidade aos comportamentos e atitudes que não se reduzem nunca apenas ao que dão a ver. Ciência das profundidades, não das superfícies, a Psicanálise do Encontro Educativo propõe-nos uma Investigação/ação que toma como objeto a dinâmica dos processos psíquicos que influenciam a intersubjetividade e as vias através das quais um ser humano se constrói, se desconstrói e se pode ainda reconstruir, reconhecendo em cada ser humano um sujeito que ainda não é… paradigma tão caro a João dos Santos: a educabilidade. Convida-nos a um diálogo entre observação e auto-observação, à reflexividade e a questionarmos as nossas atitudes e atos pedagógicos, de uma forma aberta e atenta ao educando. Um convite a que trabalhando com a criança, o educador trabalhe igualmente sobre si próprio, para que não fique aprisionado nas malhas da repetição “(…) Os mestres são modelos, modelos de disponibilidade. Ser ou estar disponível é ter uma vida interior que se organiza em termos de deixar espaço para a sensibilidade e para a sabedoria dos outros” (JS).
A Psicanálise do encontro educativo ensina-nos sobretudo que a afetividade é indissociável do desenvolvimento da inteligência e que a palavra que o adulto dirige à criança traz com ela afetos que ressoam longamente pela vida, pois que as palavras antes de significarem alguma coisa significam alguma coisa para alguém.
Se como diz Edgar Morin, em entrevista ao Jornal Le Monde, a missão essencial da educação e do ensino é a de nos preparar para viver, então os conhecimentos vitais, do Ensino Básico à Universidade, não serão essencialmente os conhecimentos “sobre” o Ser Humano mas os de “como” ser Humano. Esse é também o ensinamento e o desafio que João dos Santos parece lançar a este novo século e ao educador em cada um de nós."
Santarém, 8 de Novembro 2013
Maria Teresa Casanova Sá

*   Comunicação na Conferência “XXI Jornadas da Prática Profissional da Escola Superior de Educação de Santarém – O Segredo do Homem é a própria Infância: pensar em Educação com João dos Santos”, proferida pela Dra Maria Teresa Casanova Sá, 8 de Novembro de 2013



terça-feira, 8 de abril de 2014

Nem tanto ao mar nem tanto à terra



Ainda hoje muitos estudiosos se questionam acerca da origem da agressividade: será inata (um instinto ou pulsão) ou adquirida (por frustração ou trauma)? Por outras palavras, será genética e constitucional ou será resultado de experiências muito precoces? O que é inquestionável é que a incidência da agressividade nos seres humanos varia amplamente de indivíduo para indivíduo.
Sabemos desde muito cedo demonstrar o nosso desagrado. Pedir e reclamar são acções que exigem um “mínimo” de agressividade. A criança pode demonstrar assim algumas reacções de raiva quando não obtém o que pretende (gritos, choro, agitação, morder) pois a raiva é o afecto básico subjacente à agressividade. Estas reacções directamente agressivas vão normalmente cessando à medida que a criança é capaz de se exprimir pela linguagem. Recorrendo às palavras, podemos expressar as emoções sem ter como único recurso a explosão corporal, na forma de gritos e agitação motora, sendo estes, recursos mais primários.
Contudo, algumas crianças continuam a manifestar-se mais explosivas, agredindo colegas, adultos, ou partindo coisas. São crianças ditas impulsivas que, face à mínima contrariedade, se enfurecem violentamente. Por vezes, esta atitude é selectiva, acontecendo apenas com uma determinada pessoa, geralmente com adultos incapazes de acolher, conter e dar significado à zanga, tudo isto, de forma madura e adequada. Não se responde a uma birra com outra birra. Por outro lado, este tipo de zanga que mora à flor da pele, geralmente remete para duas situações opostas: ou frustração a mais, ou frustração a menos. Ou seja, ou há muita falta de afecto e disponibilidade para a criança ou, por vezes, demasiada permissividade, reforçando a omnipotência típica das crianças pela incapacidade de se lhes colocar os "tão falados" limites (pouca assertividade e dificuldade em dizer não)  muitas vezes já por receio de uma reacção “complicada”. É importante a existência de uma figura de autoridade. Tradicionalmente, este papel é desempenhado pelo pai que, simbolicamente, representa a “lei” mas, muitas vezes, pode ser a mãe capaz de desempenhar igualmente bem a função. Ou seja, na estruturação psicológica das crianças, terá que haver pelo menos uma figura parental que introduza e represente as normas (com algum acordo da outra figura parental), bem como a gradual aceitação das frustrações e contrariedades inerentes ao viver. Percebe-se que este comportamento também se encontra com frequência em famílias onde o entendimento entre os pais (ou figuras cuidadoras) é frágil ou artificial.
Em escalada e não percebida, esta zanga permanente ou "também chamada" intolerância à frustração (seja por falta ou excesso dela) adquire, em algumas crianças, proporções inquietantes, culminando por vezes em comportamentos de risco na chegada à adolescência: destruição de objectos, ameaças permanentes, fugas de casa, etc.

É de realçar que do outro lado da moeda há a problemática da inibição grave da agressividade. Quando encontramos uma criança que evita por completo qualquer situação de carácter agressivo, não protestando e nunca se enfurecendo, é momento de questionar. Crianças vulgarmente submissas e aparentemente muito ajuizadas estarão provavelmente a reprimir as suas emoções mais agressivas, o que não é facilitador de um desenvolvimento saudável e equilibrado. Desde a leve inibição à total incapacidade em defender-se, o “lugar da vítima” começa a definir-se cedo, podendo evoluir para modalidades de funcionamento relacional em que aceitar tudo o que acontece sem nunca se zangar, reclamar ou reivindicar, se torna um padrão de relação com os outros, originando sofrimento psicológico.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Pedrinha (Dos tributos)


“João dos Santos defendia o sonhar e o pensar para se opor à administração indiscriminada de drogas, que apenas faziam bem aos calos e à queda do cabelo, como ironizava.

Maria José Vidigal (in João dos Santos e a Moderna Psiquiatria da Infância)

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Manifesto


No exercício da parentalidade, todos os dias se encontram histórias de papéis invertidos, trocados ou confundidos entre pais e filhos. São histórias de fronteiras mal definidas entre os lugares de cada um e que boicotam infâncias, embora sem intenção. Nem sempre o equilíbrio familiar é conseguido e a confusão inicia-se, cresce e invade as crianças, surgindo as dificuldades de autonomização e bom desenvolvimento.
Um dos sintomas deste caos familiar é a incapacidade de alguns adultos/pais de se separarem dos seus próprios filhos e a inexistência de fronteiras claras (banhos comuns, camas comuns, falta de privacidade ou intimidade). A obrigatoriedade de partilhar tudo em família, sejam segredos, interesses ou ideologias, amputa a individualidade fundamental de qualquer criança/adolescente. Outro sintoma do caos é quando os pais carregam os seus filhos com confidências e desabafos permanentes, procurando um “colo” para as suas angústias naqueles que deviam estar a recebê-lo. Outro sintoma, ainda, quando pais pretendem ser os “melhores amigos” dos seus filhos em vez de serem apenas aquilo que lhes compete e lhes é pedido, serem pais. Se certas crianças pudessem comunicar sobre aquilo que as rodeia, redigiriam um manuscrito que seria seguramente parecido com isto:

“Pais e Crescidos:

Na descoberta de nós próprios muitas vezes somos confundidos. A individualização é um caminho básico para o bom desenvolvimento: 1) Não queremos partilhar todos os nossos segredos convosco como se fossem os nossos melhores amigos e não queremos igualmente saber dos vossos segredos, fardos ou intimidades. Pai é pai, mãe é mãe, amigo é amigo e “cada macaco no seu galho”; 2) Não nos usem para preencher vazios conjugais. Não podemos nem queremos preencher o lugar do pai ou da mãe e não se iludam pensando que não damos conta; 3) Não nos usem para repetir “abandonos” a que foram sujeitos e não nos usem para descarregar as vossas zangas, frustrações e ansiedades; 4) Se não são suficientemente capazes de tomar conta de vós próprios não deviam tomar conta de mais ninguém, não conseguimos dar-vos o colo que os vossos pais não vos deram nem salvar-vos dos vossos abismos; 5) Precisamos muito de vocês e não podem ser vocês a precisar muito de nós. NOTA: Em boa verdade quando estamos todos misturados dá-nos a ilusão de protecção eterna e até gostaríamos de dormir para sempre no vosso quentinho mas sabemos que nem sempre os nossos desejos são adequados, porque somos pequeninos e, por isso, os bons pais ajudam-nos a separar devagarinho a fantasia da realidade. Não queremos com isto dizer que não façam o melhor que podem ou que sabem. Mas como diz o ditado, de boas intenções está o Inferno cheio.

Obrigado,


As Vossas Crianças.” 

domingo, 20 de maio de 2012

Excelência do Pensamento



António Coimbra de Matos foi galardoado com o prémio - Distinguished Psychoanalytic Educator Award 2012 - prémio com que o IFPE  (The International Forum for Psychoanalytic Education) distingue anualmente uma “Personalidade de Mérito” associada à excelência do ensino da Psicanálise. 
Este prémio será entregue na IFPE’s 23rd Annual Interdisciplinary Conference, Theme: Sustainable Psychoanalysis: Embracing Our Future, Preserving Our Past, em Novembro 2-4, 2012, The Governor Hotel , Portland, Oregon.
António Coimbra de Matos é um dos fundadores da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica. A AP está inscrita na IFPE desde o ano de 2009 e alguns associados têm-na representado anualmente nesta conferência.
Parabéns, Professor !

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Mãos ao Trabalho!


“O desespero nunca serviu as sociedades democráticas e é preciso ter em conta os sonhos das pessoas, que se podem tornar em pesadelos. Os psicólogos têm um papel fundamental para lidar com as incertezas e ajudar os portugueses.”

Telmo Baptista

Bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses - Sessão de Abertura do I Congresso Nacional da OPP (18,19,20 e 21 de Abril de 2012)

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

"Meu" Filho!



 Filho é um ser que nos foi emprestado para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e de aprendermos a ter coragem. Isto mesmo! Ser pai ou mãe é o maior acto de coragem que alguém pode ter, porque é expor-se a todo o tipo de dor, principalmente o da incerteza de estar a agir correctamente e do medo de perder algo tão amado. Perder? Como? Não é nosso, recordam-se? Foi apenas um empréstimo.

José Saramago

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Quem (não) sai aos seus



Todos os pais têm sonhos para os seus filhos. Quando um bebé desejado começa a crescer na barriga da mãe, infinitos planos e projectos ganham forma na mente dos seus pais. Nasce um nome e, associado a esse nome, uma fantasia. Sonham que ele seja feliz, saudável, sonham que ele seja bem-sucedido e que constitua um dia uma família. Sonham, de certa maneira, que esse filho reúna em si aquilo que pensam ser o melhor deles próprios.

Fantasiar é bom e natural. Sonhar uma boa vida para um filho é sinal de amor. Sonhar que um filho se torne um adulto com valores adequados, orientando-o nesse sentido, também. A criança cresce, torna-se jovem e, por fim, adulto. Cresce enriquecida pelas suas ideias, crenças, gostos, opiniões e escolhas. Vai-se definindo, num processo dinâmico e intersubjectivo com o meio envolvente. E, naquilo que é tão seu, torna-se um ser único e insubstituível.

Acontece, contudo, que nem sempre os sonhos dos pais correspondem aos sonhos dos filhos. Seja no seu carácter, na sua personalidade ou nas suas variadíssimas opções de vida, nem sempre os filhos se tornam aquilo que os pais imaginaram um dia. E nem sempre os pais encaram com bons olhos a diferença. Alguns necessitam de um clone deles próprios como condição para seu amor, um filho que seja um prolongamento do que eles são ou que não conseguiram ser. Onde fica o espaço para o indivíduo se permitir a conhecer-se, avançar e retroceder, crescer, sem medo de perder o afecto dos outros?

Nem todos têm capacidade para avaliar que estão a viver não os seus sonhos mas os sonhos de outro alguém. Não raras vezes, este falso Self (um Eu postiço) manifesta-se apenas como um vazio imenso, sem nome, que habita dentro de nós, indivíduos. É algo que se instala muito precocemente e torna-se um padrão de funcionamento. Viver para agradar aos outros é um teatro, ou mais precisamente, uma prisão. É uma prisão depressígena, que nos deprime e nos engole por não permitir ser-se amado por aquilo que realmente se é. Viver com medo de desiludir (para desiludir é preciso que alguém esteja iludido) e consequentemente perder o amor dos outros significativos, é definhar dentro de um corpo sem existência própria.

            No nosso quotidiano, dizer “sai à mãe” ou “sai ao pai” é a expressão mais genuína e evidente de que há uma tendência generalizada, quiçá de inscrição genética, para procurar desde cedo traços de semelhança com os progenitores. Apesar disso, o mais importante é permitir que a criança saia a ela própria. E, incondicionalmente (não é o amor dos pais o único amor verdadeiramente incondicional?) poder amar os filhos nas suas semelhanças e diferenças, respeitando a sua individualidade e o seu caminho.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Pedrinha (Da capacidade de amar uma criança)


"De amor pelas crianças só são capazes aqueles que amam a criança que neles habita. Nem todos puderam ser crianças, alguns foram apenas objectos utilitários de alguém. Que o teu filho não seja um utensilio de compensação da tua frustração ou um adorno da tua vaidade. Não o tornes num autómato, não faças dele um objecto utilitário. Deixa que a espontaneidade das tuas experiências infantis renasça das trevas dos teus preceitos e preconceitos de adulto, para falares com o teu bebé uma linguagem de gestos e de olhares que ele entenda e que o ajude a descobrir o mundo das pessoas e das coisas. Fala com a tua sabedoria, mais do que com o teu saber."
João dos Santos

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Sensibilidade e bom senso


Educar é uma arte que exige bom senso e muito amor. Quando educamos uma criança, estamos não só a ensinar-lhe as regras básicas de funcionamento em sociedade, mas também a vincar-lhe o carácter e a moldar o seu desenvolvimento, cognitivo, social e afectivo. Na área da Psicologia da Família, fala-se comummente em estilos parentais educativos. Baumrind (1971) propôs uma categorização em três estilos que, embora seja uma generalização, abrange os padrões mais comuns de exercer a parentalidade: estilo autoritário, estilo permissivo (indulgente ou negligente) e estilo autoritativo.
O estilo autoritário implica um controlo rígido das atitudes da criança (associado ao uso de medidas punitivas verbais ou físicas), sem negociação, numa atmosfera de pouco envolvimento emocional. Exige-se obediência absoluta, no entanto, o apoio e suporte emocional fornecido é habitualmente fraco.
O estilo permissivo, na versão indulgente, caracteriza-se pela ausência de normas, apesar de o ambiente familiar ser geralmente muito rico em afectos. Os desejos dos filhos assumem um papel central na família. Há, portanto, um baixo nível de controlo e são feitas poucas exigências aos filhos, nomeadamente a nível da obediência, da responsabilidade e da maturidade. Na versão negligente verificamos a mesma ausência de limites e estruturação mas, neste caso, aliada a um desinteresse e demissão das funções parentais. São, no fundo, pais ausentes em todos os sentidos.
O estilo autoritativo (ou estilo participativo) é exercido com partes aproximadamente iguais de controlo e apoio familiar, impondo regras mas estimulando simultaneamente a independência dos filhos, através de um nível médio e adaptativo de exigências ao nível da responsabilidade e crescimento. Quando a circunstância o permite, há negociações e comunicação familiar, contudo, noutros contextos, verifica-se uma maior rigidez e assertividade, devendo assentar este equilíbrio na especificidade de cada criança no que respeita à sua idade, maturidade e motivações.
A investigação tem demonstrado que, de uma forma geral, o estilo parental autoritário conduz a um desenvolvimento com base na obediência e responsabilidade, produzindo, contudo, maiores níveis de ansiedade, insegurança e sentimentos de infelicidade, bem como uma baixa auto-estima e um índice elevado de depressão. Por outro lado, o estilo permissivo está habitualmente associado a problemas de comportamento, devido à falta de estruturação, sendo o impacto ainda maior nos casos de negligência, tendo em conta o défice nos afectos. Os estudos apontam, assim, para que seja o estilo autoritativo que conduz a um maior sucesso ao nível do desenvolvimento emocional, escolar e social.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Filhos ditadores, alunos violentos

"Por favor, baixa o volume. O pai está a tentar fazer os teus trabalhos de casa."

 
Assistimos, ao longo das últimas décadas, a uma alteração progressiva dos valores e da forma de funcionamento da sociedade portuguesa que conduziu, entre muitas outras coisas, à existência de um número cada vez maior de crianças que não encaram o adulto (pai, mãe, professor, educador) com o respeito de “antigamente”.
Por um lado, essa alteração trouxe uma maior proximidade, saudável, entre crianças e adultos, a nível das escolas e das famílias. Porque, por vezes, o respeito vestia a forma de medo e a excessiva distância imposta não era emocionalmente saudável. Por outro lado, o limite entre o saudável e o caótico está a tornar-se difuso. Surgem, agora, filhos ditadores e alunos violentos. Crianças cada vez mais impertinentes, desrespeitadoras, desobedientes e egoístas, em variados contextos. Crianças que, maioritariamente, cresceram com poucos limites e poucos nãos, no seio de famílias onde o tempo escasseia, onde o afecto é trocado pela matéria, onde a paciência para educar nem sempre abunda..!
A situação explica-se segundo vários factores, mas falemos da culpa que cabe aos pais. Nesta época de apogeu dos direitos das crianças, parece que nasceu o medo (ou a preguiça) de as contrariar. Mas criar uma criança tentando não a contrariar e agradar-lhe sistematicamente, mesmo quando não é aconselhável, rapidamente se revela um erro estratégico. Infelizmente, sabemos que uma criança que não sabe elaborar a sua frustração dificilmente poderá estruturar-se de forma saudável, originando, pelo contrário, meninos/adultos birrentos e caprichosos. Os limites ensinam a criança a reagir à frustração. Desde cedo, saber ouvir não, saber que há coisas que se podem fazer e outras não, saber que há permissões e proibições e ser capaz de crescer com isso torna as crianças emocionalmente saudáveis e disciplinadas. Para lá dos limites, há a questão dos bens materiais. Nas casas, os brinquedos abundam, mas a criança brinca sozinha. E nem vale a pena, porque os melhores brinquedos da criança serão sempre os seus pais, como afirma Eduardo Sá. Há também a questão das fronteiras familiares. Nas famílias, estas fronteiras nem sempre são bem definidas e os papéis hierárquicos aparecem por vezes trocados, com filhos a mandar calar os pais ou a gritar com eles.
É preciso recuperar alguns valores pedagógicos perdidos no tempo. Penso em mim, nascida no seio da chamada geração rasca, prevejo para esta mais recente “fornada” uma alcunha bem mais negra do que aquela atribuída, em tempos, à minha geração.