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terça-feira, 6 de setembro de 2016

Em Fuga


Quando pressentimos que dentro de nós existe um buraco temos medo de cair nele. Chamemos-lhe “o lado depressivo da personalidade”, um lugar escuro e triste, que nem sempre conseguimos justificar logicamente mas que nos suga a energia e nos deixa num estado de espírito terrível, por vezes até incapazes de reagir, de viver. O medo da depressão existe em todos nós, desde que em algum momento conhecemos de perto estados de desânimo profundo e conseguimos fantasiar o que será viver nesse lugar.
O medo da depressão (ou dos estados mais depressivos) leva-nos tantas vezes a uma fuga para a frente: viajando, trabalhando ou exercitando o corpo de forma compulsiva, ou de forma mais perigosa, pelo abuso de substâncias (drogas, álcool), sexualidade exacerbada, compulsão alimentar, etc. Esses caminhos por onde o medo nos conduz não representam necessariamente escolhas conscientes, ou seja, é quase automático este gesto de evitamento da dor interna e consequente busca do prazer, ainda que efémero ou ilusório. O medo da depressão é o medo de um buraco sem fundo. Mas fugir, evitar, ou negar esse buraco é mais prejudicial do que cair nele, e mesmo batendo de rabo no chão (pois ele tem, sim, fundo) explorá-lo e encontrar maneira de sair ou de viver com ele.
Fugimos da depressão, dor da perda, quando, por exemplo, depois de um divórcio nos negamos a chorar ou a encontrar-nos a sós com a nossa solidão e entramos imediatamente numa nova relação. Fugimos tantas vezes quando nos morre alguém chegado; a dor é funda e temos medo, não queremos senti-la. Fugimos quando não conseguimos estar parados ou sozinhos, evitando ficar a sós com a nossa cabeça. Os casos serão infinitos mas não é preciso um evento externo ou uma causa lógica para sentirmos a presença silenciosa de um qualquer sofrimento. Talvez o maior medo surja mesmo das dores cujas origens não identificamos; daquele sofrimento ou insatisfação permanente que nem entendemos bem de onde vem mas que está lá, à espera que olhemos para ele. Fugimos dessa dor desconhecida, cujas raízes são, frequentemente, antigas e profundas, vivendo refugiados em estratégias que nos permitem andar para a frente, mas sem a coragem de querer perceber o que é isso que nos come por dentro.
Porém, as emoções mais difíceis estão à espreita, e querendo nós olhar ou não para elas, elas olharão para nós. Fitam-nos, particularmente nas horas mais escuras, e talvez seja necessário olhar para elas de frente, e perguntar-lhes “quem és tu e o que queres de mim?”. O conhecimento pode ser assustador, mas o desconhecido é mais. O conhecimento é um processo muito poderoso, porque o medo da dor é sempre pior que a dor em si. O medo vive da imaginação e não tem fim; a dor vive do real e quanto mais intimamente a conhecermos, melhor viveremos com ela, ou apesar dela.  

sábado, 31 de outubro de 2015

O Preço do Silêncio (in Expresso)

Reflectia eu, por determinada razão, sobre o drama destes miúdos, encolhidos nos seus cantos, repetidamente violentados de várias maneiras, gradualmente mais e mais fragilizados. Pensava eu numa opinião ouvida há uns dias, uma análise acerca da autonomização destes miúdos, 'vítimas de bullying', acerca de formarem a sua identidade com mais facilidade por se encontrarem fora do 'rebanho'. Entendo a lógica mas não podemos ir por aí. É violentíssimo, é terrorismo, é desamor. A autonomização pelo desamor não interessa a ninguém. Então, pensava eu em tudo isto e nem a propósito:"Há pais que ainda acham que o bullying faz parte de uma infância normal, mas o normal são os conflitos, não a violência continuada e intencional”

terça-feira, 7 de julho de 2015

O Cansaço e Outras Máscaras da Depressão

Álvaro de Campos

Apesar de haver cada vez mais sensibilidade relativamente aos assuntos do foro da saúde mental, a verdade é que alguns sintomas depressivos continuam a ser desvalorizados e/ou a passarem despercebidos. Estar deprimido não é somente o abismo negro, desesperante, que muitos imaginam. Não é obrigatório chegar ao ponto de apresentar tendências suicidas; podemos estar deprimidos e continuar a funcionar nos vários níveis da nossa vida, embora num ritmo e frequência diferentes. Ou seja, estar deprimido não implica necessariamente abandonar o trabalho ou negligenciar a higiene pessoal ou da casa e as relações familiares. Muitos dos tantos que trabalham todos os dias, tomam banho e estendem a roupa todos os dias, vão buscar os filhos à escola todos os dias, apresentam sinais de depressão, em maior ou menor grau, que não os incapacitam na totalidade, mas que diminuem a sua felicidade e qualidade de vida:

1.       O “cansaço” crónico: abatimento, inércia, apatia, “preguiça” de fazer as coisas, ausência de vitalidade, de dinamismo, de energia;
2.      A falta de interesse e de alegria: ausência de entusiasmo pelas coisas, falta de apetite pela vida, dificuldade em sentir prazer nas mais diversas circunstâncias, levando, por vezes, ao isolamento social e relacional;
3.      A baixa auto-estima e desvalorização pessoal: sentimento de que ninguém gosta de nós, que não temos valor e que não fazemos nada de jeito;
4.      A culpabilidade: perda da capacidade de distinguir uma acusação justa de uma acusação injusta, aceitação acrítica das acusações que nos são dirigidas, responsabilização excessiva ou mesmo ilógica perante as situações que não dependem de nós;
5.      A perda da líbido, do desejo sexual: dificuldade ou incapacidade de retirar prazer, gozo, da relação com o outro, às vezes justificada com o dito “cansaço” ou pela acusação do outro;
6.   A perda de apetite ou alimentação descuidada: pouca vontade de comer e hábitos alimentares nocivos e/ou nutricionalmente pobres (à base de “comida preguiçosa”, como por exemplo, snacks, “fast-food”, guloseimas);
7.      A insónia e/ou fadiga: turbulência nos padrões de sono (dificuldade em adormecer, sono interrompido, ou excesso de horas de sono mas pouco revigorantes);
8.      As dores físicas: queixas sistemáticas de sofrimento físico, seja ósseo, neurológico, visceral ou muscular, com presença de dores mais ou menos resistentes aos tratamentos médicos, muitas vezes sem diagnóstico clínico que justifique a sua presença;
9.      A memória fraca: dificuldade em lembrarmo-nos detalhadamente dos acontecimentos e atenção diminuída/empobrecida sobre a vida, muitas vezes atribuída à “distracção” ou “cansaço”;
10.   A indecisão: um querer e não querer ou nem sequer saber o que se quer ou para onde se vai, consequência directa da dificuldade em se ouvir a si mesmo ou de confiar em si mesmo.


sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Histórias de Desespero e de Esperança


Podíamos contar uma história, que pode ser a história de qualquer um de nós. Por norma, estas histórias começam com esperança, nem que seja por dois minutos. Depois, mais cedo ou mais tarde, acabaremos por conhecer o desânimo. Perante um desânimo de cadência continuada, irrompe então o desespero. E é aí, no lugar do desespero, que a história sempre se divide em dois finais diferentes: ou retomamos o caminho da esperança, ou perdemos a fé nas coisas boas e entregamo-nos a uma qualquer forma de desistência.
Assim, o desespero e a esperança são dois sentimentos antagónicos no que toca à reacção às contrariedades, sempre em função daquilo que esperamos da vida. Esperança é fé e entusiasmo. Se na nossa história encontramos sempre algo em que acreditar, que nos segure e nos empurre em frente, é porque somos fundamentalmente movidos a esperança. E isso é bom. Desespero é a sensação de exaustão. É o fim de um caminho. Irrompe nos momentos em que não se espera absolutamente mais nada de uma situação. É, no entanto, por isto que muitos pensadores defendem que a esperança vem depois do desespero. A exaustão pode proporcionar rupturas importantes na nossa vida. Nem todas as crises são más.

E a verdade é que, não raras vezes, oscilamos entre ambos, conforme os tempos e as circunstâncias. Os momentos de desespero fazem, sim, parte da vida, contudo, é na capacidade de reencontrar o caminho da esperança que mora a saúde mental. Afastamo-nos da saúde mental quando deparamos com desesperos tão desesperados que se torna impossível recorrer ao pensamento e retomar o caminho do desenvolvimento. Não é invulgar, pois o desespero é, de certa forma, uma emoção-limite, algo da ordem do insuportável. E é muito doloroso passar por estes estados emocionais. Seria possível viver uma vida inteira deprimido, mas não seria possível viver a vida inteira em desespero, seria um desgaste que o corpo e a mente não aguentariam. Assim, o desespero surge em picos e vai alternando com alguma serenidade que, por norma, conseguimos sempre reencontrar. Com maior ou menor eficácia, a maioria de nós consegue embalar-se nos momentos mais difíceis e reencontrar uma forma de tornar a acreditar. Na mais pequena coisa que seja. A maioria de nós reencontra sempre a esperança dentro de si. Até porque o fim de um caminho permite sempre a descoberta de outro. E é nessa capacidade de reencontrar novos trilhos que reside a esperança. Sabemos que depois de cada tempestade vem sempre a bonança, como diz o povo.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

O homem que queria ser um rapaz


Mikie, ele preferia Mikie a Michael. Afirmava que o nome se lhe adequava melhor, “Sabe, não é tão formal”, e, tal como viria a concluir mais tarde, esse nome também não soava tão adulto.
Quando começou a terapia, Mikie era um neurocirurgião bem-sucedido e respeitado. Trabalhava duramente durante muitas horas e era conhecido pela sua paciência, bem como pela sua competência.
Mikie tinha tudo: uma grande casa, carros antigos e uma extensa galeria de arte de artistas bem conhecidos. Mas não tinha esposa, não tinha uma pessoa afectivamente significativa na sua vida, não tinha um namoro sério nem de qualquer tipo. Mikie estava sozinho e tinha mesmo desistido de namorar. Geralmente sociável e cheio de sentido de humor, Mikie foi encaminhado para a terapia devido a uma depressão tão incapacitante que, na opinião dos seus colegas, podia colocar os seus pacientes em risco. Como seria de prever, o Dr. Mikie tinha um aspecto abatido, sem um sorriso visível. Encharcado em suor, com o peito a arfar, assemelhava-se a um atleta de maratona que acabava de atravessar a linha da meta num esforço inglório. Definitivamente, não transmitia a imagem de um profissional bem-sucedido.
Ao longo dos meses seguintes, eu ouvi a sua história. Com o tempo percebi que o que era mais real na sua vida era a sua depressão e não o cirurgião extrovertido e aparentemente feliz. Na verdade, ele detestava ter esta “profissão de curar”, interessava-se pouco por pessoas e estava zangado com as exigências da vida. O que Mikie realmente desejava era que o deixassem sozinho e que o deixassem brincar.
O seu pai, um homem abatido, mas sobretudo zangado, era aparentemente incapaz de manter um emprego. Sendo um mecânico hábil e com o dom da palavra, conseguia arranjar inúmeros empregos, mas era ainda mais bem-sucedido a perdê-los. O seu humor variava entre o desespero zangado e momentos calmos e divertidos de prazer, embora, devido ao seu sarcasmo mordaz, esses momentos acontecessem frequentemente à custa de alguém. Mikie cresceu sem saber que pai iria chegar a casa à noite. À medida que ia crescendo, a solução encontrada passava por estar a maior parte possível do tempo longe de casa.
Conquanto o seu pai não valorizasse o tempo que ele gastava nos estudos, nem os resultados que obtinha, Mikie ganhou a atenção e aprovação dos seus professores. Como reconhecimento, foi premiado com bolsas de estudo para a faculdade de medicina. Do seu pai, recebeu um desdém amargurado: “O quê? A sub-normalidade do Estado de Illinois não é suficientemente boa para ti? Harvard é uma treta!”.
Desde que a mãe de Mikie tinha morrido com cancro no cérebro, tinha ele apenas três anos de idade, que ele não se lembrava o que era um aconchego calmante nos braços de uma mãe. Também não tinha ninguém que o ajudasse a sarar as feridas infligidas pela raiva cortante do pai, disfarçada de “gozo saudável”.
À medida que a terapia progredia, aumentavam também as desconfianças de Mikie. À medida que nós íamos avançando, a confiança dele em mim ia diminuindo progressivamente: acusava-me de não o levar a sério ou de ser demasiado sério, indiferente e técnico. Muitas vezes, os seus sentimentos estavam restringidos à raiva e ao desespero.
Gradualmente, porém, a sua raiva tornou-se predominante e ele lançar-se-ia numa fúria incontida se eu falasse sem a monotonia que ele próprio me tinha atribuído. Fui também instruído a sentar-me quieto: “Não mexa um músculo”. Se eu falhasse na realização da sua satisfação, ele soltaria uma invectiva inflamada, exigindo saber quem é que eu pensava que era.
Este período da terapia durou cerca de um ano. Nenhuma das intervenções que tentei pareceu ter qualquer consequência. Um dia, no meu desespero, disse-lhe que não conseguia trabalhar sob estas orientações impostas: “Você está a cortar a minha circulação vital, o meu oxigénio emocional, e está a pôr o meu corpo dormente. O mundo estéril e rarefeito que você está a criar está a ferir-nos a ambos. Não vou continuar assim. Desta maneira não posso ajudá-lo a si nem a mim próprio.”
Esperei por uma explosão, mas ela não apareceu. Em vez disso, o que recebi foi aceitação. Aparentemente, quando quebrei as suas regras, Mikie ficou aliviado. Sozinho, ele tinha apenas indícios daquilo que lhe tinha acontecido emocionalmente. Agora alguém tinha colocado isso em palavras. Nesta minha assunção do papel de realizador e director, ele conseguiu ver o quão “mecanizado e dirigido” se sentia por dentro.
Mikie tinha crescido demasiadamente rápido, mas não estava emocionalmente apto para aguentar a profissão que ele tinha “escolhido”. Tornara-se diferente do seu pai até que, como se se tivesse aberto um buraco na sua mente, ele sentiu o seu pai dentro de si, impulsionando-o, empurrando-o, ridicularizando-o. O pai de quem ele teve de se afastar, o pai que tentou tão arduamente desligar dentro de si mesmo, através da sobrecompensação de ser o médico bom, paciente e altruísta.
Então, quão intrínsecas seriam a sua bondade e generosidade e quanto ressentimento, frieza e distanciamento fariam também parte dele? É com esta questão que agora se debate internamente, mas penso que ele sente que já cumpriu tempo suficiente como o cirurgião da sua própria mãe – erradicando e destruindo nos outros a doença que a levou para longe dele. Agora Mikie necessita de se esquivar ao peso dessa responsabilidade e, nas suas próprias palavras, ele “só quer brincar, mas não sozinho”.
Neste momento, começa a falar como um jovem cheio de expectativas, entusiasmo e desejo de brincar pelo mais simples e puro prazer de brincar, ao mesmo tempo que também procura descobrir mais acerca de quem ele é realmente. Mikie está a tomar grandes decisões na sua vida e colocou uma pausa nos seus compromissos no hospital e na universidade. Está à procura de uma vida nova, uma vida boa, e eu irei estar com ele, pelo menos durante uma parte do percurso – e isso será um prazer.

Richard Raubolt in Cenários Psicanalíticos do Trauma


quinta-feira, 17 de abril de 2014

Pedrinha (Das Perdas)

Mais do que a transitoriedade, o que incomoda é o luto.

Carlos Amaral Dias (VI Encontro da AP – Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Culpas e desculpas



A culpa é um sentimento ligado ao sentido de responsabilidade e à reflexão sobre as consequências dos nossos actos. Para lá da sua definição mais básica, a culpa é um sentimento complexo. É complexo porque existe a culpa dita normal, lógica, mas também uma culpa que pode ser ilógica, logo, patológica. Este último sentimento de culpa implica assumir uma culpa que não nos “pertence”, traduzindo-se num estado constante de angústia e sistemática desvalorização de si mesmo. É deixar-se culpar facilmente pelo outro em situações em que não é suposto, ou mesmo pedir desculpa ainda antes de sermos anunciados culpados. Deve dizer-se que estes fenómenos se passam de forma mais ou menos inconsciente, ou seja, sem alguém que nos ajude a pensar os nossos pensamentos não temos bem noção do que fazemos com os nossos sentimentos de culpa.
Culturalmente, durante muito tempo os indivíduos viveram em sociedades limitadas pela culpa, onde muito era reprimido e pouco era permitido. A culpabilidade é a uma belíssima forma de dominar o outro e o sentimento de culpa é um severo carrasco. Uma pessoa dominada pela culpa fica amarrada ao outro e presa dentro de si mesma. Neste contexto, há mais de cem anos atrás, Freud descreveu o sentimento de culpa como o mais importante problema no desenvolvimento da civilização desse tempo. Os seus pacientes sofriam sobretudo de patologias associadas à grande culpabilidade que sentiam. Reprimidos, não se permitiam ser autênticos, não se permitiam a pensar pela sua cabeça nem a viver os seus afectos. O ser humano tinha muito pouca liberdade de “ser”.
Aos poucos, ao longo do séc. XX, as sociedades foram mudando e a culpa foi abandonando o seu papel tão castrante no desenvolvimento do ser humano. Nesta linha, Jacques Lacan, psicanalista francês do séc. XX, dizia que, em última instância, a única coisa de que podemos realmente sentir-nos culpados é de abrir mão dos nossos desejos. E assim foi. Sedentos de liberdade, fomos dando azo às nossas vontades, cada vez com maior confiança e assertividade. Teremos caído no outro extremo? Hoje, séc. XXI, fala-se muito da falta de limites nos indivíduos (principalmente a propósito das crianças e dos adolescentes). Eventualmente mas não generalizando, há casos de exageros, mas para não cairmos em tentação de voltar aos “regimes” da culpa, queremos escolher um caminho mais adequado. Uma consciência social, relacional, parental, e individual, com a responsabilidade inerente ao bom desenvolvimento psicológico de cada um. Os limites não são impostos só porque sim, é a realidade per si que nos continua a colocar os limites. Seremos sempre movidos pela procura do prazer e da realização individual, mas embatemos todos os dias nas interdições colocadas pela realidade. Esta é, inevitavelmente, a condição humana.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Corpo e Psique - Definhar e Florescer



"Os estados afectivos persistentes de natureza penosa, ou, como se costuma dizer, 'depressiva', tais como desgosto, a preocupação e a tristeza, abatem a nutrição do corpo como um todo, causam o embranquecimento dos cabelos, fazem a gordura desaparecer e provocam alterações patológicas nas paredes dos vasos sanguíneos. Inversamente, sob a influência de excitações mais alegres, da 'felicidade', vê-se o corpo inteiro desabrochar e a pessoa recuperar muitos sinais de juventude. Evidentemente, os grandes afectos têm muito a ver com a capacidade de resistência às doenças infecciosas; um bom exemplo disso é a observação médica de que a propensão a contrair tifo e disenteria é muito mais significativa nos membros de um exército derrotado do que na situação de vitória. Ademais, os afectos – embora quase que exclusivamente os depressivos – muitas vezes bastam por si mesmos para ocasionar doenças, tanto no tocante aos males do sistema nervoso com alterações anatómicas demonstráveis quanto no que concerne às doenças de outros órgãos." (Freud em "Tratamento Psíquico (ou Anímico)", 1905)

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Pedrinha (Das infâncias sólidas)


“A saúde mental constrói-se na infância. Os factores posteriores são menos importantes. Uma criança teve perdas de afectos na infância, fez uma depressão infantil que pode ter passado despercebida, estará mais fragilizada na idade adulta e poderá deprimir facilmente. Se teve uma infância sólida aguentará bem as perdas afectivas.”

António Coimbra de Matos

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Marylin, O Mais Belo Fantasma do Mundo


 
"Ninguém podia adivinhar que se tratava de um fantasma. Ela era demasiado bonita para isso, demasiado doce, resplandecente. Uma aparição não tem calor, é um lençol frio, um tecido, uma sombra inquietante. Ela, ela encantava-nos. Devíamos ter desconfiado. Que poder tinha ela para nos fascinar tanto, para nos impressionar e nos levar à nossa maior felicidade? Deixamo-nos cair na armadilha a ponto de não compreendermos que já estava morta havia muito tempo.

Na verdade, Marylin Monroe não estava completamente morta, estava apenas um pouco, às vezes um pouco mais. O seu charme, ao fazer nascer em nós um sentimento delicioso, impedia-nos de compreender que não é necessário estar morto para não viver. Começara a não estar viva desde que nascera. A sua mãe, desumanamente infeliz, expulsa da humanidade por ter trazido ao mundo uma filha ilegítima, estava estupidificada de infelicidade. Um bebé não se pode desenvolver de outra forma que não seja no meio das leis inventadas pelos homens, e a pequena Norma Jean Baker, mesmo antes de nascer, encontrava-se fora da lei. A melancolia que sentia preenchia de tal forma o seu mundo que a mãe não teve força para lhe oferecer uns braços tranquilizadores. Foi necessário colocar a futura Marylin em orfanatos gelados e confiá-la a uma série de famílias de acolhimento entre as quais era difícil aprender a amar.

As crianças sem família não têm tanto valor como as outras. O facto de serem exploradas sexual ou socialmente não pode ser considerado um crime grave, uma vez que estes pequenos seres abandonados não são totalmente crianças verdadeiras. Algumas pessoas pensam assim. Para sobreviver apesar das agressões, a pequena Marylin teve de começar a “imaginar”, a alimentar-se da própria dor, antes de se afundar na melancolia e na loucura da sua mãe. Então, declarou que Clark Gable era o seu verdadeiro pai, e que pertencia a uma família real. Não tinha outra alternativa! Desta forma construía uma identidade vaga, já que, sem sonhos loucos, teria sido forçada a viver num mundo de lama. Quando a realidade morre, o delírio dá origem a uma maré de felicidade. Assim, casou-se com um campeão de basebol para quem cozinhava todas as noites cenouras e ervilhas , cujas cores tanto lhe agradavam.

Em Manhattan, onde tirou cursos de teatro, passou a ser a aluna preferida de Lee Strasberg, que era fascinado pelo seu estranho encanto. Já tinha estado morta muitas vezes. Era necessário estimulá-la bastante para que não se deixasse levar para o mundo dos mortos. Ela hibernava, não saia da cama e já não se lavava. Quando acordava com um beijo, de Arthur Miller, por quem se tornou judia, de John Kennedy ou de Yves Montand, reanimava-se, deslumbrante e afectuosa, e nenhum deles se apercebia de que tinha sido encantado por um fantasma. No entanto, ela dizia-o quando cantava I’m Through With Love. Estando já afastada do mundo dos mortais, refulgente em plena glória, sabia que só lhe restavam três anos de vida antes de oferecer a si própria um último presente: a morte.

Marylin nunca esteve completamente viva, mas nós não o podíamos saber, pois o seu fantasma era tão maravilhoso que nos enfeitiçava."

Boris Cyrulnik in O Murmúrio dos Fantasmas

quarta-feira, 6 de junho de 2012

O "conforto" do familiar


Não se aprende sozinho nem de repente a ser aquilo que nunca fomos. Não se aprende por instinto a sentir essa espécie de paz/felicidade que nunca foi sentida. É algo que nos é estranho. Mesmo quando ao nosso redor se encontram circunstâncias felizes, podemos “preferir”, inconscientemente, a familiaridade da melancolia ou da depressividade. Podemos não conseguir sair desse lugar que tão bem conhecemos. Podemos não nos permitir sequer tentar. No fim de contas, querendo ou não, são sempre as nossas amarras internas que nos limitam.

“Os meus estados deprimidos ainda me seduzem e fazem falta para me sentir preenchida por dentro. Ainda confio nas minhas tristezas e ainda as chamo, admito. Aconteça o que acontecer, desde que as chame, aparecem sempre. São de confiança. E depois, o que se faz mesmo com a felicidade? É-se feliz, e depois? Depois deve ser preciso aprender a viver-se feliz, a acreditar que se merece, a aprender a não ter medo que algo de terrível aconteça, a fazer as pazes com o que se passou connosco, a aceitar, a perdoar, a aprender a continuar, a acreditar, a confiar, a transmitir, a não desistir, a lidar com o vazio e a preenchê-lo com coisas bonitas feitas por nós. A infelicidade não me exige nada disso, é só deixar-me estar.”

Marta Gautier

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Depressão na Recessão


Faz algum tempo, no dia 19 de Janeiro, foi entrevistado num canal da nossa televisão o Prof. Carlos Amaral Dias, psiquiatra e psicanalista português. O conceito central discutido foi “depressão na recessão”, que diz respeito ao súbito aumento da taxa de suicídio em Portugal (e também em outros países, como a Grécia ou a Irlanda) e de perturbações depressivas associadas à conjuntura económica actual. O impacto da crise económica e social na saúde mental dos portugueses é inquestionável, uma vez que “a pobreza, o desemprego e a exclusão social são factores que levam a um conjunto de afectos como a tristeza, sentimentos de ruína e sobretudo os sentimentos de desespero”, como foi referido. Estes afectos estão correlacionados com o aumento do índice suicidário, bem como com o aumento do número de depressões.

O desemprego e a precariedade em que muitos portugueses hoje vivem originam frequentemente sentimentos de auto desvalorização e a sensação de fracasso. Contudo, o impacto psicológico da crise assume contornos diferentes em função da faixa etária da população. É fundamentalmente na meia-idade que se verifica maior incidência de sintomas de depressão, esta estreitamente relacionada com o sentimento de perda, já que muitos indivíduos tinham a sua vida relativamente organizada e, subitamente, são forçados a lidar com a perda de rendimentos, de emprego ou de casa. Em acréscimo, torna-se muito angustiante para um indivíduo de meia-idade imaginar a possibilidade a oportunidade de “recomeçar do zero”. No que respeita à juventude, o impacto psicológico não está tão relacionado com a depressão, mas encontram-se muitos sintomas de ansiedade, espelhando o medo do futuro.

Em momento de “cortes” na Saúde e na Segurança Social e, portanto, na ausência de um sistema nacional que possibilite um suporte psicológico adequado ao momento de crise, impera a necessidade de o indivíduo procurar apoio na sua rede social, isto é, na família, nos amigos e na comunidade. Contudo, para que isso aconteça é essencial que cada um reconheça (perante si próprio e muitas vezes perante os outros) as suas dificuldades, pois existe sempre muita vergonha associada às situações de carência económica e, mais ainda, vergonha relativamente à fragilidade psicológica. Paradoxalmente, importa dizer que existe sempre mais força no indivíduo que assume as suas fragilidades do que naquele que as esconde. Em acréscimo, sabe-se que negar e fugir da nossa verdade (interna e externa) é uma das causas de mal-estar psicológico. O acto de pedir ajuda (seja de que ordem for) é, por si só, um acto de Saúde Mental.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Mãos ao Trabalho!


“O desespero nunca serviu as sociedades democráticas e é preciso ter em conta os sonhos das pessoas, que se podem tornar em pesadelos. Os psicólogos têm um papel fundamental para lidar com as incertezas e ajudar os portugueses.”

Telmo Baptista

Bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses - Sessão de Abertura do I Congresso Nacional da OPP (18,19,20 e 21 de Abril de 2012)

quarta-feira, 21 de março de 2012

Prisioneiros do Corpo


O conceito de motricidade diz respeito a um conjunto de mecanismos que nos permitem mover o corpo e os membros em relação aos objectos que nos rodeiam. É também o que permite manter uma postura, isto é, a atitude do corpo no espaço.

A motricidade é uma função absolutamente fundamental, sendo não só uma das mais claras evidências da vida, mas também a nossa principal forma de subsistência, devido à capacidade de interacção com o meio ambiente. É através do movimento dos corpos que podemos transformar pensamentos em acções e sonhos em realidade.

Existem três tipos de movimentos, os voluntários, os voluntários automáticos e os actos reflexos. Os movimentos voluntários são dependentes da vontade do organismo, implicam uma tomada de decisão. Os movimentos voluntários automáticos são de início e cessação voluntários mas o seu ritmo de base é automático como, por exemplo, no caso da locomoção e da escrita. Podemos decidir quando começar e parar de andar mas, enquanto andamos, o movimento é automático. Os movimentos reflexos têm um padrão rígido e automático, sendo também independentes da vontade, na medida em que o organismo não pode de modo algum decidir se o reflexo vai ou não acontecer.

Do mais simples ao mais complexo, dotam a espécie humana de capacidades invulgares e, quando “adoecem”, fazem-nos imensa falta. Estamos, lamentavelmente expostos, à possibilidade de sofrer lesões a nível motor (acidentes, AVC, doenças degenerativas) alterando e condicionando (consoante a gravidade das lesões) a nossa vida em vários aspectos: pessoais, relacionais, profissionais, familiares. Também o próprio processo de envelhecimento deteriora, em maior ou menor grau, as capacidades motoras do indivíduo. Perder capacidades ao nível motor implica muitas vezes a perda de competências, de autonomia, de auto-estima e de liberdade. Inevitavelmente, tudo isto implica grande sofrimento psicológico para o próprio, mas também para aqueles que se relacionam com ele.

Aliado às outras intervenções terapêuticas, o psicólogo assume aqui um papel extremamente importante, pois após a perda do controle dos movimentos, ficamos vulneráveis a crises de depressão e despersonalização. Estão presentes a nostalgia do passado, a tristeza do presente e o medo do futuro. O quotidiano muda, as expectativas mudam, os sonhos mudam (ou perde-se a capacidade de sonhar), e o psicólogo deve intervir tanto junto do próprio paciente como da família de modo a ajudar a minorar o sofrimento e o choque, bem como ajudar a perspectivar a situação e as mudanças que ela implica.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Depressão vs. Personalidade Depressiva


Tem sido falado que Portugal é o país da Europa com a maior prevalência de doenças mentais. Sabe-se que dois milhões de pessoas, na sua maioria mulheres, sofrem de depressão. Os dados fornecidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) indicam que, em 2020, será esta a patologia que mais despesas acarretará para o Estado. Preocupante? Sim, porque os reais contornos da depressão ainda são significativamente desconhecidos e/ou desvalorizados pela generalidade dos portugueses.
Operacionalizando, sabemos que um indivíduo sofre de depressão quando verificamos alguns destes sintomas: presença de humor depressivo (ou perda de interesse em quase todas as actividades); alterações no peso ou apetite, sono e actividade psicomotora; diminuição da energia; dificuldades em pensar, concentrar-se ou tomar decisões; sentimentos de desvalorização pessoal ou culpa; ansiedade elevada e/ou sensação de pânico; pensamentos frequentes a respeito da morte ou ideação suicida. O afecto principal da patologia depressiva é a tristeza (embora nas crianças o humor possa ser irritável em vez de triste). Não esquecer a face psicossomática da depressão, ou seja, a presença de “dores” do corpo que tantas vezes não são mais do que o espelho das “dores” da alma.
Consoante os autores, vários modelos defendem a origem da depressão como mais dependente ora das estruturas psíquicas internas, ora da experiência. Contudo, todos apontam, com maior ou menor relevo, as inadequações do processo afectivo-relacional com os progenitores como o aspecto central na origem da patologia. As estruturas depressivas são sempre condicionadas por acontecimentos exteriores sentidos por nós com um carácter de insuficiência, ausência, vazio e, quase sempre, mais do que a forma como as coisas realmente se processaram, o que interessa é a maneira como as sentimos.
Quando se fala de estrutura depressiva (ou personalidade depressiva), queremos clarificar que são inúmeros os casos em que, independentemente de não se verificar um quadro depressivo propriamente dito (e impeditivo de uma vida funcional), os indivíduos apresentam uma personalidade com traços declaradamente depressivos, encontrando-se à espreita uma potencial depressão (com tudo o que tem direito). Pintada em escala de cinzentos, numa personalidade depressiva encontramos normalmente uma acentuada dependência de um objecto protector e satisfatório (que se prolonga pela vida fora em relações familiares, de amizade, conjugais, etc), uma baixa auto-estima e self diminuído, e uma culpabilidade interna que espreita, implacável e punitiva, invadindo o sujeito com a responsabilidade de “todos os males do mundo”.
Importa realçar que, quer haja uma depressão propriamente dita, incapacitante, quer haja unicamente uma personalidade de tons depressivos, a necessidade de um acompanhamento psicológico surge sempre na medida em que o indivíduo sinta que o seu funcionamento traz prejuízo ao seu bem-estar.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Depressão em ponto pequeno



Também as crianças se deprimem. Não é comum uma criança verbalizar o seu sofrimento, não porque não queira, mas porque não sabe, logo não pode. É simplesmente “um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei porquê”.
Na verdade, nem sempre é fácil detectar a depressão infantil com um simples olhar. Então como se manifesta a depressão e os seus sintomas nas crianças? Em primeiro plano, pode observar-se uma lentificação ou inibição psicomotora (traduzida num aspecto envelhecido, rosto pouco expressivo, postura excessivamente ajuizada e submissa). Mas, mais frequentemente até, verifica-se, pelo contrário, agitação motora, uma incapacidade de estar sossegado, que expressa o mal-estar interno.
A nível cognitivo surge a dificuldade em pensar, em prestar atenção às tarefas escolares, a dificuldade de concentração, responsáveis por fuga ou evitamento da “situação escolar” e conduzindo, tantas vezes, ao insucesso. A perda de auto-estima é expressa numa desvalorização e sensação de incapacidade e insucesso quase sistemática. Numa criança em idade escolar, a capacidade de aprendizagem é uma das primeiras áreas a ser afectada pelas perturbações emocionais, visto que, sem bem-estar emocional, a criança não pode ter disponibilidade interior para desejar conhecer mais ou aprender melhor.
Ocorrem também perturbações do apetite, fundamentalmente anorexia da primeira infância e bulimia ou rilhagem (absorção alimentar excessiva) na criança mais crescida ou pré-adolescente. No que respeita ao sono, o adormecer é difícil, com oposição e recusa ao deitar, os pesadelos e os medos são frequentes e remetem para a componente ansiosa da patologia.
A nível somático, dores de cabeça e dores de barriga também são manifestações comuns. Aliás, quanto mais nova é a criança, mais a depressão se exprime por intermédio do corpo. À medida que a criança cresce, o corpo deixa de ser o principal veículo do sofrimento e os problemas afectivos tornam-se mais psicológicos, dando lugar aos problemas de comportamento e a queixas verbais, manifestados fundamentalmente na forma de dificuldades escolares e de irritabilidade. O comportamento é a expressão motora do mundo interno da criança, constituindo ainda uma poderosa forma de comunicação dessas vivências internas.
Tendo em conta o vasto leque de manifestações sintomáticas, a síndrome depressiva infantil é, por vezes, difícil de reconhecer, podendo associar-se a sintomas que, em geral, não são automaticamente relacionados com esta patologia.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Pedrinha (Do círculo depressígeno)

A solidão decorre da falta e conduz à depressão, que por sua vez agrava a solidão. É o círculo depressígeno.

António Coimbra de Matos