segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Felizes os que sonham



História dos dois que sonharam”
                                                                                             Jorge Luis Borges, 1975
O historiador árabe El Ixaqui conta este facto: 
"Dizem os homens dignos de fé que houve no Cairo um homem muito rico, mas tão magnânimo e liberal que perdeu todas as riquezas, menos a casa do seu pai, e viu-se forçado a trabalhar para ter o que comer. Trabalhou tanto que o sono, certa noite, venceu-o debaixo de uma figueira do jardim, e no sonho viu um homem gordo que tirou da boca uma moeda de ouro e lhe disse: “Tua fortuna está na Pérsia, em Isfajan, vai buscá-la.”
Na madrugada seguinte ele acordou e empreendeu a longa viagem e enfrentou os perigos do deserto, dos navios, dos piratas, dos idólatras, dos rios, das feras e dos homens. Chegou por fim a Isfajan, mas no centro dessa cidade foi surpreendido pela noite e estendeu-se a dormir no pátio de uma mesquita. Junto da mesquita havia uma casa e, por vontade de Deus omnipotente, um bando de ladrões atravessou a mesquita e depois a casa, e as pessoas que dormiam despertaram com o barulho dos ladrões e pediram socorro. Os vizinhos também gritaram, até que o capitão da guarda nocturna daquele distrito acudiu com seus homens e os bandidos fugiram pelo terraço. O capitão mandou investigar a mesquita e nela, deram com o homem do Cairo. Aplicaram-lhe tantos golpes com varas de bambu que ele andou perto da morte. Dois dias depois recuperou os sentidos na prisão. O capitão mandou chamá-lo e disse-lhe: “Quem és e qual a tua pátria?” O outro declarou: “Sou da famosa cidade do Cairo e o meu nome é Mohamed El Magrebi”. O capitão perguntou: “Que te trouxe à Pérsia?”. O outro decidiu-se pela verdade e afirmou: “Um homem ordenou-me, num sonho, que eu viesse a Isfajan, porque aqui estava minha fortuna. Já estou em Isfajan e vejo que essa fortuna que prometeu deve ser os açoites que tão generosamente me deste”.
            Diante de tais palavras, o capitão riu até mostrar os dentes do siso e acabou por dizer-lhe: “Homem desatinado e ingénuo, três vezes eu sonhei com uma casa na cidade do Cairo em cujo fundo existe um jardim e no jardim um relógio de sol e depois do relógio, uma figueira e depois da figueira uma fonte e debaixo da fonte um tesouro. Não dei o menor crédito a essa mentira. Tu, entretanto, filho duma mula com um demónio, erraste de cidade em cidade, guiado apenas pela fé do teu sonho. Que eu não te volte a ver em Isfajan. Toma essas moedas e vai-te.”
            O homem pegou nas moedas e regressou à pátria. Debaixo da fonte do seu jardim (que era o do sonho do capitão) desenterrou o tesouro. Assim Deus o abençoou e o recompensou e exaltou. Deus é o Generoso, o Oculto”.

(Do livro das 1001 noites, noite 351)

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