segunda-feira, 19 de maio de 2014

Uma Psicanálise do Encontro Educativo

“O diálogo que me foi construindo como profissional, assente numa dupla filiação em Psicanálise e Educação, devo-o certamente a João dos Santos e aos momentos em que nas salas da Universidade, ainda na Pinheiro Chagas, nos encontrávamos com ele, uns com os outros e com a Psicologia. Nesses encontros João dos Santos fazia entrar sem cerimónia o mundo grande, a complexidade e o enigma, a cultura e a educação, a escola e a infância, a pedagogia e a terapia, a psicanálise e a importância de nos questionarmos a nós próprios.
É uma curiosa e feliz coincidência que o ano de nascimento de João dos Santos (1913) seja o ano em que Sigmund Freud publicava o seu trabalho “O interesse da Psicanálise”, apontando nesse magnífico texto o denominador comum entre a Psicanálise e a Educação: o facto de ambas reconhecerem a importância decisiva da infância na evolução do homem. Escreve então : ” A Psicanálise viu-se obrigada a fazer derivar a vida psíquica do adulto da vida psíquica da criança e a tomar a sério o adágio popular de que a criança é o pai do homem. Estudou a continuidade da psique infantil no adulto, identificou as transformações e as mudanças que se cumprem nesse caminho e encontrou a confirmação do que já havíamos frequentemente pressentido: a extraordinária importância, para todo o curso ulterior da vida do homem, das suas experiências infantis e em particular das que ocorrem nos primeiros anos da infância (…) A contribuição principal da Psicanálise para a educação é o reconhecimento da importância da Infância”.
É também neste texto de 1913 que podemos ler: «O maior interesse da Psicanálise para a Ciência da Educação funda-se sobre um enunciado que se tornou evidente, o de que não pode ser educador senão aquele que pode sentir do interior a vida psíquica infantil e quando nós, adultos, não compreendemos as crianças é porque deixámos de compreender a nossa própria infância».
Como que respondendo a este desafio, João dos Santos, psicanalista e pedagogo, pioneiro do diálogo entre a Psicanálise e a Educação em Portugal, torna o enunciado freudiano o fundamento da sua obra convidando cada adulto e nele cada educador a encontrar-se com  a criança que guarda dentro de si para que, sentindo do interior a vida psíquica infantil,  possa  encontrar-se com a criança e educar… Educar, é oferecer-se como modelo (JS).
Educação designa simultaneamente um processo e o resultado desse processo. O processo consiste num trabalho de formação pelo qual a criança é chamada a desenvolver as faculdades que a definem como ser humano e o produto deste trabalho de formação, a bem dizer interminável, é a realização no sujeito das características constituivas dessa humanidade. Sabemos que o processo educativo implica um campo de influências múltiplas e recíprocas entre adultos – pais, professores, educadores – crianças e adolescentes e que o caminho da educação é pontuado por encontros que vão permitindo a construção do ser e o seu desenvolvimento. No coração do desenvolvimento está a relação. A complexidade desta relação é tal que é difícil de dizer o que nela age e o que ela transforma, mas que é da ordem do encontro, parece indubitável. E se é bem verdade que todo o encontro humano é um enigma, não temos hoje qualquer dúvida de que os agentes de transformação são as pessoas e não as estruturas. No coração do desenvolvimento está a relação e  é também a relação que está no coração do encontro educativo: “Só se educa quando uma relação humana se estabelece, se desenvolve e se confirma na intimidade de cada uma da crianças e adultos em presença” (JS).
Marcel Postic no seu livro A relação pedagógica esclarece: “A relação pedagógica torna-se educativa quando em vez de se reduzir à transmissão do saber, compromete as pessoas em presença num encontro onde cada um descobre o outro e se vê a si mesmo e onde começa uma aventura humana pela qual o adulto vai nascer na criança. João dos Santos não se cansa de o lembrar: “Educar é basicamente estabelecer uma relação, a relação implica que o objeto de amor seja investido. Aquele que faz o primeiro movimento deve ter disponibilidade para receber as descargas afetivas no esboço de comunicação que se estabelece. A comunicação define-se como energia que passa num certo sentido e no sentido inverso (…) “A pedagogia e a didática funcionam melhor quando são instrumentos de comunicação reciproca”(…). No plano pré-educativo da relação básica, como no plano da educação, a relação deve ser entendida como uma disponibilidade afetiva para dar e receber amor terno e amor agressivo” (JS).
Parece-me que a formação de educadores e professores dever dar uma prioridade absoluta à relação pedagógica, pois que o trabalho educativo é essencialmente um trabalho de ligação. É um trabalho que se inicia sempre por uma ligação humana, a partir da qual se torna possível levar o aluno a estabelecer ligações com os objectos mais distantes que constituem a cultura e os saberes. Toda a relação é sustentada e animada por processos de identificação recíproca ou mútua e o encontro educativo não foge a esta regra: ao desejo de apropriação por parte do educando tem que corresponder um desejo de dádiva do educador. O educador/professor oferece-se como objeto desejável de aprendizagem e o educando como objeto desejável de educar. “O encontro não é só obra do acaso, é também obra da disponibilidade recíproca daqueles que se encontram. O encontro depende da convicção do que de perene existe nos nossos semelhantes” (JS).
Na relação com os outros, mesmo que mediada pela transmissão de um conhecimento, como é o caso da escola, não estamos nunca desimplicados, estamos com a nossa história, feita a nossa pessoa. Cada um de nós sabe-o, sentiu-o, experimentou-o. Basta que evoquemos o nosso passado escolar para que surja toda a gama de sentimentos que tecem a relação com a aprendizagem: angústias e alegrias, entusiasmos e deceções, proximidade e afastamento, adesões e ruturas. A escola está em cada momento e em cada sala cheia de fenómenos afetivos, de narrativas de vida silenciosas, que uns e outros contam, escutam e às quais respondem. Cada momento de ensino/aprendizagem é a história de um encontro, mais ou menos conseguido, entre um professor, um aluno e um saber. Cada actor em cena quando convoca o saber, convoca igualmente em cada um dos seus actos toda a sua pessoa, uma história de vida e um projecto de vida, melhor ou pior sucedidos, uma memória implícita, activa, representações, sentimentos, valores, uma ideia de humano, de criança, de adulto, uma ideia de crescimento, uma ideia de aprendizagem, expectativas, dúvidas, paixões, violências, desilusões, sucessos e frustrações, desejos de reconhecimento, pulsões construtivas mas igualmente pulsões destrutivas de domínio e de controlo. Uma tal implicação é em si mesma constitutiva do encontro e, sendo inevitável, longe de ser inoportuna é mesmo útil e desejável. Não encontramos os outros e os outros não se encontrarão connosco senão através da nossa presença e autenticidade.
“Não existe, nem creio que alguma vez exista, uma forma exata de educar, pois que a sociedade está constantemente a evoluir e a sua própria evolução implica a negação pela juventude da validade dos princípios educativos imposta pelos antecessores. Não existem educadores perfeitos, e quando há pretensos educadores perfeitos, os seus produtos são casos patológicos” pensava João dos Santos, e tudo quanto aconselhava, no estado atual dos nossos conhecimentos, precisava, era que “cada um eduque com verdade e espontaneamente e que os educadores sejam personagens reais e não autómatos eruditos e sofisticados (…) Se a educação pode ser encarada como um fenómeno cultural que orienta o diálogo com o educando e os outros educadores, a ação educativa deve sempre basear-se na relação espontânea, afetiva e instintiva pois que quem educa são as personagens verdadeiras e não as figuras ideais. Não se educa com teorias mas com princípios e preconceitos adquiridos na experiência e no convívio familiar e comunitário, não sendo a educação uma matéria que se ensine, mas fundamentalmente uma atitude que reflete o confronto entre as vivências do educando que fomos com o educador que pretendemos ser” (JS).
Que educadores pretendemos ser?
Escolhermos ocupar-nos de crianças ou jovens é reencontrar a nossa própria infância e juventude. Mesmo que não guardemos recordações conscientes, não  deixamos de ser menos habitados por essas idades pois foi lá que nascemos para para a relação, para a percepção de nós e dos outros. Cada educador revive e transpõe afetos e sentimentos com origem em lugares do seu passado (mas nem por isso menos presentes e atuantes no seu mundo interno) para os lugares e relações do presente e também para a sua relação com o conhecimento e com cada um dos seus educandos, dos seus alunos. Este é um dos maiores contributos da Psicanálise para as Ciências da Educação e aquele que João dos Santos, como psicanalista do encontro educativo, permanentemente nos lembra. Em cada uma das suas histórias – contador de histórias como gostava de se apelidar – fala-nos deste Outro em nós, desta nossa parte de enigma, irracional e secreta “Toda a pessoa guarda um segredo e o segredo do homem é a própria Infância” eda sua influência nas relações que estabelecemos. Este Outro, dimensão Inconsciente na terminologia psicanalítica, é o que nos move, o que permanentemente nos escapa e o que teima em reaparecer em cada um dos nossos encontros educativos. É importante conhecê-lo, dizendo de outro modo, é importante que nos conheçamos.
“A motivação para os problemas da criança, escreve João dos Santos, reside na própria infância de cada um, a experiência infantil acompanha-nos pela vida fora, e assim, podemos admitir que, tal como a Obra tem uma estrutura de base e toda a construção um alicerce, também a personalidade tem uma base ou alicerce, que é a infância. Tal como o edifício depois de acabado, retocado e experimentado não pode dispensar os alicerces, também a pessoa não pode mentalmente anular a experiência e as vivências da sua criação. As pessoas adultas equilibradas guardam saudavelmente certos factos infantis ou juvenis. O adulto vê a infância e juventude do outro através do imago que ele se fez da sua própria infância e juventude, para se rever nas suas aspirações bem-sucedidas ou para reagir contra o fracasso das suas rebeldias. O educador pensa em termos daquilo que deve ser mas, com frequência, aquilo que o educador acha que deve ser corresponde à maneira como ele próprio se organizou, quando criança ou jovem, de acordo ou em desacordo com aquilo que lhe impuseram” (JS).
Como Ciência do Humano a Psicanálise procura dar voz a este Outro, escutando a dinâmica do mundo interior, as experiências e personagens que o habitaram e habitam, trazer compreensibilidade aos comportamentos e atitudes que não se reduzem nunca apenas ao que dão a ver. Ciência das profundidades, não das superfícies, a Psicanálise do Encontro Educativo propõe-nos uma Investigação/ação que toma como objeto a dinâmica dos processos psíquicos que influenciam a intersubjetividade e as vias através das quais um ser humano se constrói, se desconstrói e se pode ainda reconstruir, reconhecendo em cada ser humano um sujeito que ainda não é… paradigma tão caro a João dos Santos: a educabilidade. Convida-nos a um diálogo entre observação e auto-observação, à reflexividade e a questionarmos as nossas atitudes e atos pedagógicos, de uma forma aberta e atenta ao educando. Um convite a que trabalhando com a criança, o educador trabalhe igualmente sobre si próprio, para que não fique aprisionado nas malhas da repetição “(…) Os mestres são modelos, modelos de disponibilidade. Ser ou estar disponível é ter uma vida interior que se organiza em termos de deixar espaço para a sensibilidade e para a sabedoria dos outros” (JS).
A Psicanálise do encontro educativo ensina-nos sobretudo que a afetividade é indissociável do desenvolvimento da inteligência e que a palavra que o adulto dirige à criança traz com ela afetos que ressoam longamente pela vida, pois que as palavras antes de significarem alguma coisa significam alguma coisa para alguém.
Se como diz Edgar Morin, em entrevista ao Jornal Le Monde, a missão essencial da educação e do ensino é a de nos preparar para viver, então os conhecimentos vitais, do Ensino Básico à Universidade, não serão essencialmente os conhecimentos “sobre” o Ser Humano mas os de “como” ser Humano. Esse é também o ensinamento e o desafio que João dos Santos parece lançar a este novo século e ao educador em cada um de nós."
Santarém, 8 de Novembro 2013
Maria Teresa Casanova Sá

*   Comunicação na Conferência “XXI Jornadas da Prática Profissional da Escola Superior de Educação de Santarém – O Segredo do Homem é a própria Infância: pensar em Educação com João dos Santos”, proferida pela Dra Maria Teresa Casanova Sá, 8 de Novembro de 2013



Sem comentários:

Enviar um comentário