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sábado, 7 de janeiro de 2017

Do Lado Esquerdo do Peito


Naquele tempo acordava várias vezes por noite com o coração transpirado. Era como se ele trabalhasse arduamente durante aquelas horas mais escuras, enquanto o corpo inerte descansa. Imaginei-o de mangas arregaçadas, expressão séria de profunda concentração, envolvido em limpezas de fundo e outras coisas que durante o dia não tem tempo de fazer, como as obras nas autoestradas, que acontecem sempre pela madrugada fora. Imaginei-o ainda em arrumações necessárias e organização logística do que estaria por vir. Chamou-me à atenção este assunto pois tornou-se matemático que a meio da noite ele precisava de limpar a testa com a palma da mão e sossegar um pouco. Bebia um copo de água e, quando eu adormecia, ele recomeçava. Senti um enorme respeito. Sabia que eram tempos conturbados e atingiu-me que havia certamente muito trabalho a fazer lá por dentro, tarefas de uma complexidade cósmica. Achei que se lhe perguntassem ele diria com toda a certeza que ser coração ali nunca tinha sido propriamente fácil, que era um trabalho exigente e que havia picos de grande turbulência. Desconfio que nem sempre recebia o necessário. Ainda assim, eram desafios que ele tinha sempre a competência de superar. Ainda assim, se lhe perguntassem, ele não quereria ser coração do lado esquerdo do peito de mais ninguém.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Histórias ao adormecer


À noite acontecem coisas estranhas. Somos, em algum momento da nossa vida, vulgarmente atacados por criaturas assustadoras, monstros e fantasmas, que não estão necessariamente debaixo da cama ou atrás do armário, mas sim bem dentro de nós (como diria Stephen King).

De onde vêm estes monstros, que têm especial preferência em “assustar” os mais pequenos? Há quem responsabilize os programas televisivos ou os videojogos mas, na verdade, o cerne da questão está na insegurança da criança, que fornece o terreno ideal para que se instalem. A criança internaliza os elementos mais assustadores da realidade, sejam bruxas, papões ou ladrões, e eles são sempre tão mais horrendos quanto maiores forem as suas angústias. Não é apenas desligando a TV que desaparecem, pois surgirão numa outra esquina qualquer da vida dos mais pequenos, nem que seja numa noite de trovoada. E ajuda muito um abraço apertado e um colo que aconchegue, côncavo, muito mais eficaz do que uma racionalização qualquer do género: “Os monstros não existem!”.

Muitas vezes, quando a criança não quer ir dormir, percebemos que aquilo que ela realmente teme é acordar na manhã seguinte e ter perdido alguma coisa. Não o cabelo, não os dentes, nem sequer perder um brinquedo. Simplesmente, medo de perder os pais. Não estamos a falar de processos conscientes mas sim inconscientes. Nenhuma criança tem capacidade de aceder ao seu inconsciente e descobrir por si própria o motivo que se esconde por detrás dos seus medos (nem os adultos, quanto mais as crianças…!).

Dormir é uma separação, equivalente a ir para a escola ou para a casa de um amigo. Dormir é estar fisicamente longe de quem amamos, o que só é simples e natural para crianças suficientemente confiantes no amor dos seus pais. Porque há tantas crianças a querer dormir bem juntinho à sua mãe? É necessário existir confiança no outro e no amor que o outro nutre por nós, para que a distância física não seja confundida com distância afectiva. Para que seja possível largar a mão da mãe sem medo e arriscar fechar os olhos, sabendo de antemão que quando os reabrirmos está tudo exactamente como dantes: no sítio.

Num mundo em que pais e filhos guardam pouco tempo para se mimar mutuamente, onde as crianças crescem cada vez mais entregues a si mesmas, e quando nasce a noite, no escuro e no silêncio do quarto, tem que haver alguma coisa que garanta que, apesar disso, não estamos, nem ficaremos, sós. Essa convicção tem que morar dentro de nós, sendo da responsabilidade dos pais fornecer satisfação e segurança suficiente à criança para que ela nunca se sinta só, nem nos momentos em que está efectivamente mais sozinha.