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domingo, 11 de junho de 2017

A Insustentável Leveza do Ser


“Desculpa-me estar hoje tão negativa”, ouvi. O que há para desculpar? O problema é que as pessoas foram gradualmente convencidas de que a sua negatividade é uma “falha no sistema”, através de uma cultura de busca de diversão e prazer constante. Movimentos como a psicologia positiva e/ou as palestras de gurus motivacionais abençoaram esta ideia de que o pensamento deve ser sempre positivo. Não há muito lugar para choro ou lamentações, exige-se às pessoas confiança, entusiasmo e gratidão permanentes. Que espaço sobra para as emoções mais difíceis?
É um facto: hoje em dia foge-se das emoções negativas como o diabo da cruz. Mas talvez por isso mesmo as pessoas andem mais doentes. Não choram, não conversam, não partilham, não querem ser um incómodo ou uma nuvem cinzenta sobre a cabeça de ninguém. De alguma maneira, circula a ideia de que a boa companhia é aquela que está sempre bem-disposta, de sorriso pregado no rosto e uma piada na ponta da língua. Uma pessoa fácil e leve. A verdade é que esta tendência é prejudicial ao desenvolvimento emocional saudável de cada um de nós. Normalizar o contato com as emoções difíceis — raiva, tristeza, medo, angústia — sem as reprimir, seria um projeto bem mais adequado ao bem-estar psicológico.
É que a vida nem sempre é para celebrar. Por vezes, é mesmo para chorar. E não só durante um momento, mas talvez durante os momentos necessários até resolver esse problema, seja externo ou interno. O recente filme de animação Divertida Mente (no original, Inside Out) tentou, e bem, mostrar isso às crianças (e não só). Uma das personagens que habita o universo emocional de Riley é a Tristeza, que vive com uma grande culpa de não conseguir ser mais alegre. Partilhando da mesma opinião, a Alegria quer predominar, tentando manter a Tristeza o mais longe possível de forma a que Riley seja uma menina mais feliz. Contudo, é ao excluir sistematicamente a Tristeza que se faz ruir todo o mundo interno de Riley, porque em certas situações da vida, reprimir a Tristeza é impeditivo de uma melhor elaboração e resolução do problema. Até porque, mesmo quando nos impedimos de pensar ou sentir algo, o nosso inconsciente fica a trabalhar sobre isso na mesma, e nem sempre da melhor maneira. Toda a verdade que não enfrentamos, assombra-nos.

E a verdade é que uma vida com sentido inclui episódios de toda a espécie. Ela até pode não ser sempre implacável, mas será pelo menos imprevisível e inconstante — como dizem os Stones, “you can’t always get what you want”. É fundamental aceitar e assumir a complexidade da vida, e vivê-la em pleno. É, aliás, o que lhe dá profundidade e sentido. O mal-estar dá sentido ao bem-estar, assim como o frio dá sentido ao calor e a noite dá sentido ao dia. É a experiência negativa de uma coisa que nos permite distingui-la do seu contrário, valorizá-lo e saboreá-lo.

terça-feira, 25 de abril de 2017

O Que Nos Contém



         Todos precisamos, em determinados momentos, de contenção — capacidade de aguentar estados emocionais muito intensos de forma relativamente integrada. A contenção permite que, em vez de os agir irrefletidamente, possamos elaborar esses estados emocionais (“digeri-los” mentalmente, absorver o que interessa e eliminar o restante).

Mas para que tal capacidade se desenvolva dentro de nós, precisamos, antes de mais, de quem nos contenha durante o nosso crescimento. Começa assim, de pequeninos, como quase tudo. Começa com alguém que aguenta, com uma mistura de amor, sensibilidade e firmeza, as nossas “coisas”: o nosso choro, a nossa angústia, a nossa vitalidade, a nossa força, a nossa agressividade, a nossa tristeza, a nossa zanga. É, portanto, alguém que está connosco durante os momentos mais intensos, não apenas fisicamente, mas integralmente: presente de forma inteira. E que, necessariamente, não fique mais aflito ou transtornado do que nós: alguém que não se desmorone com as nossas questões mais difíceis.

Há uma coisa muito importante: distinguir conter de reprimir e/ou de controlar. Reprimir é impedir, impedir que as crianças expressem as suas emoções livremente (“não chores”, "não fiques assim", "não te quero ver nesse estado", "não tens razão para isso", "que disparate"). Controlar, por outro lado, é evitar. É fazer tudo para que as crianças não sofram, não se angustiem, não sintam coisas difíceis. É interferir com a realidade e resolver os problemas por eles. Conter é outra coisa. É deixar acontecer sem interferir e lidar adequadamente com isso: estar com o outro, ou escutar, ou abraçar, ou conversar, ou ajudar a pensar, consoante as situações.

Contudo, mesmo que tenhamos crescido num ambiente emocionalmente saudável e que a nossa capacidade de lidar com as emoções seja até bastante ajustada, haverá muitos momentos, demasiado difíceis e inesperados, em que precisaremos sempre de contenção externa. Nem sempre estamos capazes de aguentar sozinhos todos os desafios que surgem cá dentro do peito. Nestas alturas, voltamos a precisar de um pouco de "colo", como quando éramos pequeninos. Esse colo simbólico é feito da mesma matéria que o colo físico. Disponibilidade — quem nos oiça refilar ou “falar colorido”. Diálogo — quem nos ajude a dar nome às emoções, porque alfabetizá-las é também contentor; as palavras contêm. Silêncio — há olhares de entendimento e empatia que contêm. Abraços — há gestos e toques que nos seguram, que nos mantêm inteiros. Limites — por vezes, perante o medo de nos partirmos em pedaços, queremos agir ou fugir e precisamos de quem nos segure e diga “não vais fazer nada nesse estado, vais respirar fundo e pensar melhor no assunto”. Há “nãos” que contêm. No fundo, uma contenção é sempre um limite. Uma espécie de "cerca" que nos protege, segura e organiza, mas que não reprime. É esta sublime diferença que nos permite transformar estados emotivos primários num pensamento mais elaborado sobre nós mesmos, construindo e não destruindo. 

E como tecto organizador de tudo encontramos, naturalmente, a relação, isto é, o amor. A substância que tudo cura e o único lugar onde a verdadeira contenção acontece.  É a boa relação que nos contém. É, sobretudo, o amor — bom, maduro, sensível, firme, atento, intuitivo — dos outros por nós, que nos contém. É o que nos lembra que estamos juntos haja o que houver. É o nosso abrigo, o nosso colo, o nosso abraço, a nossa casa. Enquanto houver uma única pessoa no mundo que nos queira e trate bem assim, jamais ficaremos sós.

sábado, 7 de janeiro de 2017

Do Lado Esquerdo do Peito


Naquele tempo acordava várias vezes por noite com o coração transpirado. Era como se ele trabalhasse arduamente durante aquelas horas mais escuras, enquanto o corpo inerte descansa. Imaginei-o de mangas arregaçadas, expressão séria de profunda concentração, envolvido em limpezas de fundo e outras coisas que durante o dia não tem tempo de fazer, como as obras nas autoestradas, que acontecem sempre pela madrugada fora. Imaginei-o ainda em arrumações necessárias e organização logística do que estaria por vir. Chamou-me à atenção este assunto pois tornou-se matemático que a meio da noite ele precisava de limpar a testa com a palma da mão e sossegar um pouco. Bebia um copo de água e, quando eu adormecia, ele recomeçava. Senti um enorme respeito. Sabia que eram tempos conturbados e atingiu-me que havia certamente muito trabalho a fazer lá por dentro, tarefas de uma complexidade cósmica. Achei que se lhe perguntassem ele diria com toda a certeza que ser coração ali nunca tinha sido propriamente fácil, que era um trabalho exigente e que havia picos de grande turbulência. Desconfio que nem sempre recebia o necessário. Ainda assim, eram desafios que ele tinha sempre a competência de superar. Ainda assim, se lhe perguntassem, ele não quereria ser coração do lado esquerdo do peito de mais ninguém.

domingo, 13 de novembro de 2016

O Que Diz o Pânico



Tudo começa com uma sensação física de mal-estar, sintomas corporais que variam entre palpitações, tremores, sudação, vertigens, sensação de desmaio, dificuldades respiratórias, sensação de adormecimento ou formigueiros, dores físicas ou pontadas, medo de morrer ou de enlouquecer. Nesse primeiro episódio, o mal-estar parece crescer descontroladamente e o susto é grande. Às vezes, resolve-se por si só, outras vezes, o episódio termina mesmo no hospital, para onde a pessoa corre cheia de medo e onde os técnicos de saúde lhe comunicam, para seu espanto, que não tem nada. É "apenas" ansiedade.
Esta é a história comum à maioria das pessoas que já vivenciaram um ataque de pânico. Em seguida, o que acontece vulgarmente é que a pessoa passa a fugir dos estímulos que associa a esse mal-estar: se estava no carro, pode deixar de conduzir; se estava na escola, pode deixar de ir à escola; se estava no estádio, pode deixar de ir à bola. Desenvolve-se uma reação fóbica. Mas a crise pode repetir-se, noutras circunstâncias. E uma nova situação pode tornar-se um novo estímulo fóbico: desta vez pode acontecer num elevador e a pessoa vai deixar de andar de elevador (ou passar a andar nele com muito medo). Quando começam a dar-se vários episódios, a vida pode ficar seriamente limitada. Nasce um medo incontrolável de estar em locais onde se possa sofrer novos ataques de pânico e de onde a fuga possa ser difícil ou demorada, conduzindo não só ao já mencionado evitamento fóbico dos mesmos, como também ao isolamento social e retirada para lugares sentidos como seguros. E o medo do medo irá “comer-nos” por dentro.
O problema é que não podemos fugir de nós mesmos, e é dentro de nós que tudo acontece. O problema não está no carro, nem na escola, nem no estádio de futebol, nem no elevador está nas nossas emoções. Tal como uma febre, os ataques de pânico não são uma doença, são um sintoma. Indicam-nos que alguma coisa dentro de nós está mal. O pânico surge quando as doses de ansiedade se tornam insuportáveis, ainda que não tenhamos consciência dela. É um conflito emocional escondido que é preciso compreender e resolver, dotando a pessoa das ferramentas necessárias para seguir o seu caminho.
            As crises de pânico não têm de ser aguentadas estoicamente. E a medicação por si só, é insuficiente e até contraproducente, se não for acompanhada de uma terapia pela palavra, que leve o sujeito a olhar para dentro e a ver aquilo que está lá e não vê. O pânico é um sintoma que fala. O pânico é, ao contrário do que se possa pensar, um sintoma de vida. É sinal de que o sujeito está emocionalmente desperto e que precisa resolver qualquer coisa dentro de si, embora não esteja capaz. O pânico não é para se calar nem para se adormecer, é para se escutar com atenção e traduzir, sem demora, o seu significado.  

segunda-feira, 27 de junho de 2016

O Que Arde, Cura


Lembro-me de cair muito ao chão em pequena. Lembro-me do ardor dos curativos na ferida e de ouvir, variadíssimas vezes, que “o que arde, cura”. O curioso é que, anos depois, entendemos que este dizer tem um significado muito vasto. De facto, não há cura sem dor, quer no plano físico, quer no emocional. Os processos de cicatrização e regeneração, sejam que que ordem forem, são sempre processos difíceis, na sua generalidade. É a coragem de enfrentar essas dores que permite a cura. Porém, o medo é muitas vezes maior que a coragem. Temos medo de sofrer. Na melhor das hipóteses, é um estado desconfortável. Na pior, insuportável. 
O problema é que, se fugimos da dor, fugimos de nós. Depois da morte do seu pai, Simba estava só e triste com a sua dor e a sua culpa quando conhece Timon e Pumba, em O Rei Leão, que rapidamente o ensinam a viver segundo o lema “Hakuna Matata”, que significa “atira o passado para trás das costas”. E este assim o faz durante um tempo, esquecendo os problemas, saboreando a festa de viver livre na selva, longe da realidade que lhe causou tanta dor. Mas, na verdade, Simba só se sente inteiro quando regressa ao lugar da sua dor para reviver e resolver a situação difícil que a vida lhe apresentou. Assim, “atirar o passado para trás das costas” só é possível depois de olhar para ele de frente, e de resolvê-lo externa e internamente. Só aí, mais sarados, podemos arrumar devidamente o passado dentro de nós.
Carl Jung disse-nos, em A Prática da Psicoterapia, que não há despertar de consciência sem dor mas que “as pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo para evitar enfrentar a sua própria alma.” É o medo e o desconforto que nos faz fugir: de chorar, de recordar, de sentir (raiva, tristeza, frustração). O medo de reviver emoções difíceis. Para quê lá voltar? Por estranho que pareça, é preciso. É preciso lá voltar as vezes que forem necessárias. Sabendo, porém, que de cada vez que voltamos a dor é menor. Ficaremos cada vez mais fortes e cada vez mais sabedores de que essa dor não nos destrói. E se a dor é assustadora demais, podemos voltar acompanhados. Seja por um terapeuta, um familiar ou um amigo: que seja alguém que nos pegue pela mão e nos ajude a percorrer essa escuridão dentro de nós, até que o caminho não seja mais assustador. Simba também não foi sozinho.
O processo de cura passa também pela dor. O que muitas vezes não sabemos é que, depois da dor, está a liberdade, a plenitude, a inteireza. Já dizia Luís de Camões “Quem quer passar além do Bojador/ Tem de passar além da dor”. Descobrir-nos-emos, na manhã seguinte, cada vez mais fortes, mais integrados e mais competentes para enfrentar os nossos Adamastores.