quarta-feira, 8 de junho de 2011

Pedrinha (Dos encantamentos quebrados)


“Para me esquecer de ti continuo a recordar-te. Iluminada pela brancura da solidão, sinto-te outro. Vejo-te como uma promessa que nunca se cumpre, uma impotência de viver que mascaras e de que te escondes iludindo os outros, fugindo, criando neles vazios, dúvidas e sofrimentos para que nunca te devolvam no olhar aquilo que realmente és. Ainda não cresceste, não estás preparado para sentir a vida, és ainda um menino dependurado na ponta dos dedos da tua mãe…
Hoje penso que o sofrimento que vivi era teu, depositaste-o em mim porque não és capaz de o sentir, apenas te mostras capaz de o ludibriar e sobreviver assim, com o engano daquilo que não és.
Hoje penso que as ausências e os desertos que ofereces te fazem existir. Com eles derramaste-me uma angústia que me levou a preencher esses vazios de ti com riquezas imensas que, afinal, eram minhas; a tua ausência levou-me a sonhar-te e sonhei-te belo, coloquei em ti uma luz e uma quentura que nunca tiveste e com que te iludiste de ser assim, pelo meu olhar.
Hoje penso que encontraste no reflexo dos meus olhos um espelho que te devolveu uma nobreza, um valor, uma beleza com que te enfeitaste e que afinal não eram teus. Agora que me retirei, creio que te empobreci e esta é talvez a maior expressão da minha revolta – deixei-te pobre, fraco, uma promessa de coisa nenhuma.”

Maria João Saraiva* (in A dor que me deixaste)
* Psicanalista associada da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica

Nota: Sobre a nossa facilidade em projectar nos outros atributos (qualidades ou defeitos) que, no fim de contas, foram sempre nossos.

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