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segunda-feira, 27 de junho de 2016

O Que Arde, Cura


Lembro-me de cair muito ao chão em pequena. Lembro-me do ardor dos curativos na ferida e de ouvir, variadíssimas vezes, que “o que arde, cura”. O curioso é que, anos depois, entendemos que este dizer tem um significado muito vasto. De facto, não há cura sem dor, quer no plano físico, quer no emocional. Os processos de cicatrização e regeneração, sejam que que ordem forem, são sempre processos difíceis, na sua generalidade. É a coragem de enfrentar essas dores que permite a cura. Porém, o medo é muitas vezes maior que a coragem. Temos medo de sofrer. Na melhor das hipóteses, é um estado desconfortável. Na pior, insuportável. 
O problema é que, se fugimos da dor, fugimos de nós. Depois da morte do seu pai, Simba estava só e triste com a sua dor e a sua culpa quando conhece Timon e Pumba, em O Rei Leão, que rapidamente o ensinam a viver segundo o lema “Hakuna Matata”, que significa “atira o passado para trás das costas”. E este assim o faz durante um tempo, esquecendo os problemas, saboreando a festa de viver livre na selva, longe da realidade que lhe causou tanta dor. Mas, na verdade, Simba só se sente inteiro quando regressa ao lugar da sua dor para reviver e resolver a situação difícil que a vida lhe apresentou. Assim, “atirar o passado para trás das costas” só é possível depois de olhar para ele de frente, e de resolvê-lo externa e internamente. Só aí, mais sarados, podemos arrumar devidamente o passado dentro de nós.
Carl Jung disse-nos, em A Prática da Psicoterapia, que não há despertar de consciência sem dor mas que “as pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo para evitar enfrentar a sua própria alma.” É o medo e o desconforto que nos faz fugir: de chorar, de recordar, de sentir (raiva, tristeza, frustração). O medo de reviver emoções difíceis. Para quê lá voltar? Por estranho que pareça, é preciso. É preciso lá voltar as vezes que forem necessárias. Sabendo, porém, que de cada vez que voltamos a dor é menor. Ficaremos cada vez mais fortes e cada vez mais sabedores de que essa dor não nos destrói. E se a dor é assustadora demais, podemos voltar acompanhados. Seja por um terapeuta, um familiar ou um amigo: que seja alguém que nos pegue pela mão e nos ajude a percorrer essa escuridão dentro de nós, até que o caminho não seja mais assustador. Simba também não foi sozinho.
O processo de cura passa também pela dor. O que muitas vezes não sabemos é que, depois da dor, está a liberdade, a plenitude, a inteireza. Já dizia Luís de Camões “Quem quer passar além do Bojador/ Tem de passar além da dor”. Descobrir-nos-emos, na manhã seguinte, cada vez mais fortes, mais integrados e mais competentes para enfrentar os nossos Adamastores.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Quando dói

Memory (The Heart) - Frida Kahlo
Há muitos anos atrás visitei uma exposição interactiva chamada “Bom dia medo!”. À entrada, todos os meninos escolhiam e sinalizavam, de entre vários, qual o seu maior medo. Entre as opções encontravam-se o medo do escuro, o medo dos animais ou o medo dos desconhecidos mas recordo-me de constatar que quase todas as crianças escolhiam o medo da dor.  
Numa fase precoce do entendimento, tememos mais a dor física (as quedas e trambolhões, as feridas, as vacinas) mas mais tarde, percebemos com facilidade que há outras dores mais terríveis: as dores da alma. Hoje sabemos que toda a dor se processa no cérebro, seja lá de que origem for. Mas é noutro lado que se sente: ninguém quer sofrer cá dentro, no coração. 
O fenómeno da dor (ou das várias formas de se sentir dor) é algo muito complexo: onde uns a sentem, outros não sentem nada, e o que representa dor para uns é diferente do que representa dor para outros. Coisas que antes doíam, deixam de doer. Coisas que nunca doeram, passam a doer. A dor é uma percepção plástica e móvel, que se altera e migra no espaço e no tempo. A dor é também um sintoma: a dor fala sobre muitas coisas. Uma dor de cabeça pode falar de ansiedade, uma dor de barriga pode falar-nos de medo, uma dor nas pernas pode falar-nos de dificuldades no processo de autonomia, entre outras situações. Em boa verdade, sentimos medo da dor física mas aquilo que nos marca é a correspondente dor mental.
Como se não bastasse, não só tememos a dor-em-si como tememos a hipótese de a sentir. Essa mesma antecipação da dor, já causa, em certa medida, sofrimento. Chamamos-lhe angústia, mas a angústia também “dói”. Corrói por dentro, torce-nos as entranhas, tira-nos o sono, a fome, a paz. Ou seja, há o medo da dor mas há também a dor do medo. O medo nasce cedo porque cedo se sabe que muita coisa, no nosso existir, dói. As experiências da dor são inevitáveis. Muitas surpreendem-nos logo dentro da barriga da mãe: desconfortos vários, de maior ou menor intensidade, que a cada sensação rapidamente nos condicionam a não experienciar aquilo mais nenhuma vez. Mas ela regressa sempre, de todas as maneiras. Em desconfortos, outros. Em desencontros, muitos, entre o nosso sentir e o sentir dos outros, pelas perdas sucessivas que vamos acumulando, pelas doenças do corpo e pelos males da alma, há demasiada coisa que dói e é disso que fugimos.
Talvez a melhor forma de lidar com a dor seja, em primeiro lugar, parar de fugir: aceitá-la. É preciso aceitar a dor. É preciso aceitar que ela faz parte da vida: da nossa e da dos outros. É na aceitação da dor que o caminho se torna mais fácil. A vida vai doer, não nos iludamos — coragem. Que isso não nos impeça, jamais, de viver. A vida vai doer mas há outra coisa que sabemos: à partida, nada dói para sempre. Tudo passa. E é nessa certeza que encontramos o conforto necessário para não morrermos de medo todos os dias. Venha o que vier, venha a pior tempestade, haverá sempre de seguida, uma bonança. É desse agridoce que surgem as melhores histórias, os melhores contos, os melhores poemas.