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domingo, 3 de abril de 2016

O Valor das Coisas

 
Ilustração Michael Kirkham/ Heart


           Na era moderna iniciou reinado “Sua Majestade, Os Mercados” e, consequentemente, aquilo a que podemos chamar a mercantilização das coisas. A mercantilização deriva em grande parte da difusão do capitalismo global e da sua tendência para a quantificação/qualificação de tudo, o que acontece muitas vezes de forma redutora. E assim chegamos a uma questão importante: a disseminada confusão entre o preço e o valor das coisas.
Segundo a teoria económica, o preço de determinado bem resulta do confronto, no mercado, entre a sua procura por parte dos consumidores e a sua oferta por parte dos produtores.  Tem também que ver com o processo de concepção do produto mas é cada vez mais fundamentando no que o mercado “pensa” e “diz” que algo vale. O preço é ainda ditado pela moda, pelo marketing e pela publicidade. O preço é algo que é atribuído, a sua origem é externa, o que implica que nem sempre o preço de algo é equivalente ao seu valor.
Valor é um conceito diferente. Há coisas muitos valiosas que nem sequer têm preço e, inversamente, há coisas muito caras sem grande valor. Valor é outra coisa. Se o preço é ditado, o valor é intrínseco. O valor vem de dentro, é uma propriedade independente do exterior. O valor não está dependente de nada, está dissociado (ou deveria estar) dos mercados, das modas, da procura e da publicidade. É também uma característica bastante subjectiva: difere consoante o olhar de cada um.
          O olhar mercantilista da era moderna conduz, talvez, à confusão. Observamos que as pessoas vão sendo sucessivamente influenciadas pelo valor que o mercado atribui às coisas (preço) e não pelo valor intrínseco das mesmas. Ou seja, as pessoas vão perdendo a sua capacidade crítica, o seu livre arbítrio e mesmo a sua identidade, deixando de escolher (ou mesmo saber) o que querem e passando a escolher o que os mercados aprovam ou recomendam.
          Depois, e talvez mais grave, deu-se uma aplicação do mesmo raciocínio às próprias pessoas, num processo que Carlo Strenger chamou a “mercantilização do Eu”. É hoje possível dizer que muita da nossa angústia narcísica (qual é o meu valor?) talvez derive do facto de vermos pessoas procurar o seu “preço” ao invés do seu valor. Querem saber o valor que o “mercado” lhes atribui quantos amigos, que estatuto, quanto sucesso, que ordenado, quantos “gostos” quando na verdade, aquilo que nos permite gostar de nós é sabermos o nosso valor, i.e., sabermos quem somos e o que nos torna diferentes: diga o mundo o que disser, recomende-nos o que quiser, pague-nos o que pagar, goste de nós ou não. 

sexta-feira, 10 de abril de 2015

D'Os Passos em Volta

Series Seven Chair by Arne Jacobsen
“- Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, Às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro… Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida… compreende?… a nossa vida, a vida inteira, está ali como… como um acontecimento excessivo… Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e a violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-lo a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?
Uma vez fui a um médico.
– Doutor, estou louco – disse. – Devo estar louco.
– Tem loucos na família? – perguntou o médico. – Alcoólicos, sifilíticos?
– Sim, senhor. O pior. Loucos, alcoólicos, sifilíticos, místicos, prostitutas, homossexuais. Estarei louco?
O médico tinha sentido de humor, e receitou-me barbitúricos.
– Não preciso de remédios – disse eu. – Sei histórias tenebrosas acerca da vida. De que me serve barbitúricos?
A verdade é que eu ainda não havia encontrado o estilo. Mas ouça, meu amigo: conheço por exemplo a história de um homem velho. Conheço também a de um homem novo. A do velho é melhor, pois era muito velho, e que poderia ele esperar? Mas veja, preste bem atenção. Esse homem velhíssimo não se resignaria nunca a prescindir do amor. Amava as flores. No meio da sua solidão tinha vasos de orquídeas.
O mundo é assim, que quer? É forçoso encontrar um estilo. Seria bom colocar grandes cartazes nas ruas, fazer avisos na televisão e nos cinemas. Procure o seu estilo, se não quer dar em pantanas. Arranjei o meu estilo estudando matemática e ouvindo um pouco de música. João Sebastião Bach. Conhece o Concerto Brandeburguês n.º 5? Conhece com certeza essa coisa tão simples, tão harmoniosa e definitiva que é um sistema de três equações e três incógnitas. Primário, rudimentar. Resolvi milhares de equações. Depois ouvia Bach. Consegui um estilo. Aplico-o à noite quando acordo às quatro da madrugada. É simples: quando acordo aterrorizado, vendo as grandes sombras incompreensíveis erguerem-se no meio do quarto, quando a pequena luz se faz na ponta dos dedos, e toda a imensa melancolia do mundo parece subir do sangue com a sua voz obscura… Começo a fazer o meu estilo. Admirável exercício, este.(…)”

Herberto Helder, Os Passos em Volta (Assírio e Alvim), pp. 9-11

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O melhor presente de Natal


Os presentes no Natal fazem parte da nossa cultura. São símbolos de afecto e de pertença, possivelmente associados ao gesto dos Reis Magos, acarretando uma tradição de celebração da família. Mas ao longo dos tempos o ritual acabou confundido e contaminado por fortíssimos apelos ao consumo.
Se isto é verdade entre adultos, mais confuso é para as crianças, obrigando-nos a estar atentos ao que se passa dentro delas e ao que lhes estamos a transmitir, enquanto modelo para a vida. A criança, cada vez mais exposta ao meio consumista, vai expressando o seu desejo de receber um certo presente, mas cabe-nos a nós ter a sensibilidade de decifrar se o que é pedido é realmente uma escolha sua, algo que lhe trará verdadeira satisfação, ou uma imposição/influência do ambiente envolvente (media, grupo de pares, etc.). Ou seja, é importante perceber qual a real motivação da criança quando pede determinado presente.
O que acontece frequentemente é que a criança nem sempre pede um presente que seja verdadeiramente importante para si. Repare-se que não é invulgar a criança ir mudando de ideia a cada anúncio que passa na televisão, ou mesmo consoante aquilo que alguns amigos pediram como presente. Mas esta dúvida é, na verdade, uma falsa dúvida. É fruto do bombardeamento de informações que ela não tem maturidade emocional para gerir, ou fruto da dificuldade em se conhecer a si mesma e aos seus desejos, imitando os outros em alternativa. O que acontece depois é que, ao receber o presente, percebe que afinal não o queria, e este acaba por ser posto de lado.
O melhor presente de Natal (ou de outra coisa qualquer) é um presente que vai ao encontro do desejo autêntico da criança e, em geral, esse desejo está relacionado com os seus afectos mais íntimos e com a sua fase de crescimento (e respectivos desafios). Assim, um menino que tem vários medos pode pedir um conjunto de tanques e soldadinhos, uma menina que começou a montar a cavalo pode pedir uma boneca cavaleira, ou uma criança que acha que ser cientista pode pedir um microscópio. O exemplo não importa, mas ilustra que, em todos os casos, o valor do presente em questão, para a criança, não é aleatório, nem financeiro (pedir o presente mais caro), nem uma imitação, mas sim emocional. Diz respeito às suas vivências: sejam medos, descobertas ou desejos. Isso é o que deve conter num presente. O desejo deve ser o desejo da criança e não o desejo do mercado ou de quem lhe dá um presente (ex: quero que o meu filho seja médico portanto vou oferecer-lhe um estojo médico).

E se, no fim de tudo isto, o presente não é possível por qualquer razão, basta dizer à criança sobre a impossibilidade real de oferecer aquele presente. A vida é feita de limitações e são esses limites que nos ensinam a esperar e que nos permitem sonhar e desejar. 

domingo, 5 de outubro de 2014

Gesto Espontâneo


Enquanto não nos conhecemos ou não nos damos a conhecer reunimos à nossa volta relações pouco verdadeiras. O que é natural porque assim os outros também não sabem bem quem somos e portanto também têm o direito de se enganar. Uma das melhores consequências de nos encontrarmos e de nos assumirmos tal e qual como somos é o facto de vermos afastar-se quem então andou por perto ao engano. Se queremos viver relações mais autênticas, as primeiras perguntas a fazer são: Sei quem sou? Estou a mostrar-me como sou? E aí entramos num processo de libertação de tudo o que não interessa, não só por fora como por dentro. Cá dentro, entendemos por fim o que significa isso da 'liberdade de ser'. O gesto espontâneo, como diria Winnicott. Não há maior alegria que a de nos reconhecermos na nossa forma mais genuína e praticar a nossa verdade, não mais nos importando com o julgamento alheio. Lá fora, um pouco mais de certeza de que quem está, está de verdade e em verdade. O ciclo é simples: abrir o coração e assumir a nossa verdade atrai mais amor e mais verdade; a verdade de saber que quem está por perto nos conhece, nos ama e nos respeita. Já não há grandes enganos a recear. Ficam os que querem manter-se por perto e esses, sim, são bem-vindos. Bom domingo!

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Pedir Desculpa: Fácil, Difícil ou Impossível?


Pedir desculpa nem sempre é fácil. É que este acto acarreta ramificações psicológicas que vão além da palavra em si. Embora possamos justificar a relutância em pedir desculpa com orgulho, por norma há uma dinâmica psicológica muito mais profunda e complexa.
Ao contrário do que parece, recusarmo-nos a pedir desculpa não reflecte uma “personalidade forte” mas sim, pelo contrário, um esforço para nos protegermos das nossas fragilidades e de angústias fundamentais (conscientes ou inconscientes). Comecemos:
  1. Admitir que se fez algo errado pode ser sentido como ameaçador quando se confunde acção e carácter: como se aquilo que fazemos definisse totalmente quem somos. Por exemplo, confundir um erro ou uma negligência com estupidez ou ignorância. Nestas circunstâncias, quando se pensa desta forma, as desculpas representam naturalmente uma grande ameaça para o nosso sentido básico de identidade e auto-estima.
  2. Pedir desculpa pode abrir as portas ao sentimento de culpa ou ao sentimento de vergonha. E enquanto a culpa faz-nos sentir mal relativamente às nossas acções, a vergonha faz-nos sentir mal em relação à nossa pessoa, o que faz dela uma emoção muito mais tóxica que a culpa. Mais uma vez, encontramos aqui uma confusão entre acção e carácter.
  3. Embora o pedido de desculpa seja uma oportunidade de resolver um conflito, quem não consegue fazê-lo normalmente receia o inverso: que abra um precedente para outras acusações e mais conflitos. E embora haja pessoas que efectivamente não aceitam o pedido de desculpa como reparação, as pessoas mais saudáveis não utilizam um momento de sinceridade e humildade para humilhar ou enxovalhar o outro, pois aí o problema já não é de quem pede desculpa, mas sim de quem não sabe aceitá-las.
  4. A dificuldade de pedir desculpa esconde ainda o receio que fazê-lo signifique assumir a responsabilidade total do assunto e libertar a outra parte do seu quinhão de responsabilidade. Aqui, há uma confusão entre as partes e o todo. Uma história tem sempre dois lados e cada um deve olhar para o seu.
  5. A recusa em pedir desculpa é, ainda, uma forma de manter as emoções sob controlo. Há o receio que, ao “baixar a guarda”, as defesas psicológicas se desmoronem e abram as portas a uma cascata de sentimentos desconfortáveis. Mas a verdade é que, quanto mais nos abrimos perante o outro, quanto mais honestos e autênticos formos, mais saudáveis nos tornamos, e mais saudáveis as relações em nosso redor. Viver de espada em riste é um tremendo cansaço e uma ardilosa armadilha.

sábado, 19 de abril de 2014

Super-Vidas


Na prática clínica somos, cada vez mais, confrontados com queixas que remetem para um sentimento de vazio interior. Como se a pessoa não se sentisse completa, preenchida ou satisfeita. Como se procurasse algo que não encontra, repetidamente. Em simultâneo, é mencionada a solidão. Estas questões remetem fundamentalmente para uma fragilidade narcísica (falta de amor pelo meu Eu) e para falhas nos processos de construção da identidade e de autonomização (constituição de um Eu maduro e que não precise em absoluto do outro). Como é do conhecimento geral, as questões da estruturação da nossa identidade e autonomia estão intimamente relacionadas com as nossas relações precoces e ambiente familiar do sujeito.
Contudo, não deixa de ser interessante perceber que o seu maior aparecimento coincide com uma época em que a cultura vigente deixa mais a nu a insatisfação das pessoas consigo próprias. O indivíduo, na sociedade actual, tem sido convocado para a busca do perfeito: corpo/imagem, status, carreira profissional, eficiência, estilo de vida. Vivendo sempre em comparação com o outro, discutindo lugares nos mais diversos rankings (o mais bonito, o mais bem-sucedido, o mais rico, o mais inteligente), como podemos escapar dessa solicitação?
Percebemos que, tal como diz Carlo Strenger no livro O Medo da Insignificância: “o mito do just do it conduziu a um incrível aumento do reino da fantasia. Procurar menos do que tudo é procurar a mediocridade. Pouco ou nada se diz sobre o processo doloroso de descobrir quem realmente somos e quais as nossas reais capacidades e limitações. Pelo contrário, a ideia que vende é: não há limites.”
A verdade é que há limites (os da realidade interna e externa) e é bom que recuperemos essa consciência. Há limites para o meu Eu (não posso ser perfeito em tudo), para as minhas capacidades (não posso fazer tudo), para os meus talentos (não sei fazer tudo), para os meus valores (não aceito tudo). Vivemos tempos em que se incentiva a diferença mas na verdade, ao querermos todos ser especiais em tudo, tornamo-nos iguais. Já não basta ter uma vida, é preciso ter uma “super-vida”.
Aqueles que, de nós, vão encontrando dentro de si recursos para manterem o bem-estar perante a competitividade e agressividade do marketing pessoal, estão sossegados. Mas muitos, com grandes dúvidas sobre o seu valor enquanto pessoa, geralmente apresentam sintomas de enorme insegurança. O caminho passa por olhar mais para dentro e menos para fora. E quando encontrarmos os nossos vazios, procuremos preenchê-los com um pouco mais de Eu e um pouco menos dos Outros.


sábado, 29 de março de 2014

Pedrinha (Sobre a Psicanálise)

As pessoas muitas vezes questionam-se se a psicanálise torna a vida mais fácil. Muito naturalmente, elas desconfiam de qualquer coisa que afirme isso. A psicanálise, além de ser um processo doloroso em si mesmo, não altera o facto de que a vida é difícil. O melhor que pode acontecer é a pessoa que está a ser analisada, vir gradualmente a sentir-se cada vez menos à mercê de forças desconhecidas, tanto internas quanto externas, e cada vez mais capaz de lidar à sua própria maneira com as dificuldades inerentes à natureza humana, ao crescimento pessoal e à gradual obtenção de um relacionamento maduro e construtivo com a sociedade.


Donald Winnicott

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Pedrinha (Das aprendizagens fundamentais)

Fundamentalmente, para que a psicopatologia não progrida, deve ter-se aprendido: pelo exemplo, a perdoar; pela ternura, a amar; pela liberdade, a ser espontâneo; pela clareza de propósitos, a exigir a verdade; pelo entusiasmo, a desejar saber; pela alegria, a gostar de viver; pelo deslumbramento que desencadeou, a apreciar a beleza.


António Coimbra de Matos (in Mais Amor Menos Doença)

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Pedrinha (Da Liberdade de Ser)


“A análise é árdua e faz sofrer. Mas quando se está desmoronando sob o peso das palavras recalcadas, das condutas obrigatórias, das aparências a serem salvas, quando a imagem que se tem de si mesmo torna-se insuportável, o remédio é esse. Pelo menos, eu o experimentei (...) Não mais sentir vergonha de si mesmo é a realização da liberdade (…). Isso é o que uma psicanálise bem conduzida ensina aos que lhe pedem socorro”.


Françoise Giroud

domingo, 22 de setembro de 2013

Pedrinha (Do dizer que não)

(…) E é do NÃO ao que te limita e degrada que tu hás-de construir o SIM da tua dignidade. 

Virgílio Ferreira


sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Manifesto


No exercício da parentalidade, todos os dias se encontram histórias de papéis invertidos, trocados ou confundidos entre pais e filhos. São histórias de fronteiras mal definidas entre os lugares de cada um e que boicotam infâncias, embora sem intenção. Nem sempre o equilíbrio familiar é conseguido e a confusão inicia-se, cresce e invade as crianças, surgindo as dificuldades de autonomização e bom desenvolvimento.
Um dos sintomas deste caos familiar é a incapacidade de alguns adultos/pais de se separarem dos seus próprios filhos e a inexistência de fronteiras claras (banhos comuns, camas comuns, falta de privacidade ou intimidade). A obrigatoriedade de partilhar tudo em família, sejam segredos, interesses ou ideologias, amputa a individualidade fundamental de qualquer criança/adolescente. Outro sintoma do caos é quando os pais carregam os seus filhos com confidências e desabafos permanentes, procurando um “colo” para as suas angústias naqueles que deviam estar a recebê-lo. Outro sintoma, ainda, quando pais pretendem ser os “melhores amigos” dos seus filhos em vez de serem apenas aquilo que lhes compete e lhes é pedido, serem pais. Se certas crianças pudessem comunicar sobre aquilo que as rodeia, redigiriam um manuscrito que seria seguramente parecido com isto:

“Pais e Crescidos:

Na descoberta de nós próprios muitas vezes somos confundidos. A individualização é um caminho básico para o bom desenvolvimento: 1) Não queremos partilhar todos os nossos segredos convosco como se fossem os nossos melhores amigos e não queremos igualmente saber dos vossos segredos, fardos ou intimidades. Pai é pai, mãe é mãe, amigo é amigo e “cada macaco no seu galho”; 2) Não nos usem para preencher vazios conjugais. Não podemos nem queremos preencher o lugar do pai ou da mãe e não se iludam pensando que não damos conta; 3) Não nos usem para repetir “abandonos” a que foram sujeitos e não nos usem para descarregar as vossas zangas, frustrações e ansiedades; 4) Se não são suficientemente capazes de tomar conta de vós próprios não deviam tomar conta de mais ninguém, não conseguimos dar-vos o colo que os vossos pais não vos deram nem salvar-vos dos vossos abismos; 5) Precisamos muito de vocês e não podem ser vocês a precisar muito de nós. NOTA: Em boa verdade quando estamos todos misturados dá-nos a ilusão de protecção eterna e até gostaríamos de dormir para sempre no vosso quentinho mas sabemos que nem sempre os nossos desejos são adequados, porque somos pequeninos e, por isso, os bons pais ajudam-nos a separar devagarinho a fantasia da realidade. Não queremos com isto dizer que não façam o melhor que podem ou que sabem. Mas como diz o ditado, de boas intenções está o Inferno cheio.

Obrigado,


As Vossas Crianças.” 

domingo, 7 de abril de 2013

A construção da identidade


Não se nasce com uma identidade estática e definida. Parte-se de uma identidade biológica mas não é, contudo, isso que nos limita, na medida em que o nosso programa genético é plástico e permite-nos seguir inúmeras direcções. A construção da identidade é um processo dinâmico e pessoal, cuja base assenta nas primeiras relações afectivas que nos rodeiam mas também no meio sociocultural em que nos inserimos. Como tudo começa?
Durante os primeiros 18 meses de vida, dá-se aquilo a que se chama a identificação imagóico-imagética. O bebé identifica-se com a imagem que os outros significativos lhe reconhecem e lhe transmitem. É uma identificação em espelho: “eu sou aquilo que acham/dizem que eu sou e serei”. Pode originar um desenvolvimento saudável ou, inversamente, patológico, pois o bebé sente e assimila sentimentos, expectativas, crenças, medos e desejos (mesmo os mais inconscientes ou mesmo os mais indesejáveis) que encontra junto daqueles que o cuidam (ou descuidam). Pensa-se que seja a fase mais fundamental para a construção de uma identidade própria.
Entre os 18 e os 30 meses, a construção da identidade passa por um processo de identificação idiomórfica, ou seja, identificamo-nos à nossa própria forma. Por auto-observação. Olhamo-nos e olhamos também para o outro que será mais parecido ou mais diferente de nós, estabelecendo comparações. Começamos a reconhecer-nos como alguém e a percebermo-nos. Nasce também uma identidade sexuada onde percebemos que somos menina ou menino e as diferenças de género subjacentes.
Posto isto, entre os 3 e os 6 anos, numa terceira fase chamada identificação alotriomórfica, a criança passa a identificar-se a um modelo, um objecto de eleição ao qual procura assemelhar-se, alguém que admira e ama. Copia o que vê o seu modelo fazer, pensar, agir, sentir e comunicar. Para o bem e para o mal. Há modelos piores e modelos melhores. Mas importa dizer que mesmo os melhores modelos não serão bons se não nos ajudarem a encontrar o nosso próprio estar e o nosso próprio sentir. Pobre daquele que é apenas uma cópia do outro.
Assim, pensar que a identidade só está estabelecida na idade adulta é um engano, pois as bases começam muito antes. Contudo, certamente que este processo é uma construção contínua, do início ao fim, e as nossas experiências de vida continuarão sempre a moldar-nos. Por isso, aceitar tacitamente que somos produto do que vivemos não será também caminho pois não nos podemos subtrair à responsabilidade que temos nas escolhas que fazemos. A construção de uma identidade será, sobretudo, uma criação própria. Temos capacidade de reflectir e transformar e, como disse um dia Ray Charles, somos os nossos próprios engenheiros.

Nota: Baseado no modelo de construção de identidade de António Coimbra de Matos

quinta-feira, 14 de março de 2013

Existir


Para encontrar a saída siga as indicações.

Pedrinha (Do Tactear)


“É mesmo essencial, para o seu equilíbrio psíquico e para a salutar expansão  da sua personalidade, que o adolescente possa tactear ou encetar vários caminhos antes de verdadeiramente escolher o que melhor corresponde à sua maneira de ser, de sentir o mundo e de perspectivar o futuro. Não lho permitir será amputá-lo para todo o sempre nas suas potencialidades evolutivas.”

António Coimbra de Matos