segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Prioridade Nacional, por Pedro Strecht



"Estamos no início de um novo século e, se olharmos para trás, bem poderemos dizer que a história da infância é um pesadelo do qual ainda agora acabamos de acordar. Não é preciso ir longe para se recordar o que se passava na antiga Grécia, quando em Esparta alguns dos mais pequenos eram liquidados à nascença, ou para lembrar que grande parte da revolução industrial do século XIX foi conseguida à custa do trabalho infantil. De verdade, só os últimos 50 anos trouxeram progressos notáveis em políticas de protecção à infância, pese embora alguns paradoxos, demonstrados na atitude de países que ainda não assinaram a Declaração dos Direitos da Criança. Mas será que chega este interesse aparentemente crescente pelo bem-estar individual e social dos mais novos? Que diferença existe entre aquilo que hoje em dia sabemos e o que, de verdade, fazemos?
Em Portugal, apesar de inequívocos progressos das últimas décadas, a situação psicossocial dos mais novos continua muito mal, e resume-se no invariável último lugar entre os países da União Europeia (UE). O desenlace final de situações de risco possíveis de detectar desde o primeiro ano de vida move debates, reúne técnicos, envolve políticos que, contudo, se esquecem de aceitar que as raízes dos problemas estão muito mais atrás. Por exemplo, quase todos se preocupam com o consumo e tráfico de drogas, com os níveis crescentes de insegurança provocada pela escalada de delinquência juvenil, com a questão do analfabetismo funcional ou com o problema do aborto, como se tudo surgisse do nada. Por que custará assim tanto olhar um pouco mais fundo e perceber as ligações entre estas situações, que não só se iniciaram, como são previsíveis e detectáveis anos antes?
É possível que a causa desta cegueira social resida em dois aspectos essenciais: a dificuldade em ter acesso a informação e conhecimento que permitam analisar em profundidade os factos, e a terrível resistência em valorizar os primeiros anos de vida como a base da construção emocional individual. Dói ter acesso a uma parte da realidade que é preferível omitir, negando doses importantes de sofrimento alheio, tanto mais quanto ele possa existir nos mais novos. É um jogo de eterno “faz de conta”: “faz de conta” que o problema da droga é com os outros, ou que o meu filho só nele se iniciará se tiver más companhias, ou “faz de conta” que delinquência é um mal que só ataca negros suburbanos e que, portanto, se resolve com uma política de emigração mais dura. Mas este é um jogo muito perigoso: esconde, adia, pretende recalcar algo que se não for resolvido na origem, continuará a existir.
Actualmente, existem em Portugal cerca de 22 mil crianças e adolescentes a viver em instituições, de forma temporária ou definitiva, sendo que grande parte desses locais luta contra dificuldades de recursos humanos e económicos inimagináveis. É triste saber de um número tão grande de “esquecidos” cujo projecto de vida será nulo ou inconsistente, por incapacidade de pais e familiares cuidarem dos seus filhos. (...)
Da escola sai anualmente um número enorme de alunos, antes do final do 9º ano ou dos 16 anos de idade, tempo de escolaridade obrigatória. Com taxas brutais no início do 2º ciclo, para onde vão aqueles que não progridem na escola? Simplesmente para a rua, ou para várias formas de trabalho infantil, para o qual não estão qualificados e, muito menos, protegidos. Os números apontam para 18 mil (segundo dizem os pais) ou 43 mil (conforma versão dos filhos) que continuam assim a ser explorados. Obviamente que aqui não se incluem os que passam ao lado da estatística, como por exemplo os que engrossam os números da prostituição feminina ou masculina.
Quanto aos que permanecem na escola, os resultados também não animam. Os números da iliteracia funcional são muito grandes. As dificuldades concretas da matemática ou da língua portuguesa, uma constante.
Mas é também no grupo dos mais novos que continua a ser crescente a taxa de consumo de substâncias tóxicas, como o álcool ou as drogas. Não se imagina o número daqueles que, independentemente do estatuto social, cedo começa a abusar destas substâncias.
Vem depois a questão da maternidade adolescente, onde ocupamos o segundo lugar, logo atrás do Reino Unido. Mas se forem apenas contabilizadas as raparigas até aos 16 anos, somos os primeiros. Não é difícil imaginar que mães adolescentes se constituem num maior risco para os bebés, dada a imaturidade emocional de muitas, a falta de amparo familiar e social de tantas, e até o próprio facto de estes bebés serem muitas vezes gerados debaixo de complicadas projecções negativas. Faltaria dizer que esta é a realidade da maternidade adolescente; mas quanto ao número de gravidezes que ocorre, nada sabemos, dada a impossibilidade de se contabilizarem os abortos clandestinos que são feitos como forma de contracepção.
Resta a questão da infecção pelo VIH/SIDA. Portugal é o único país da UE que mantém um aumento de número de infectados, à custa da população heterossexual e toxicodependente.
Cuidar dos novos não pode ser mais uma questão esquecida. É, hoje em dia, uma prioridade nacional, independentemente de qualquer orientação política. Caso contrário, estaremos a desperdiçar o potencial de gerações inteiras. O grau de desenvolvimento de um país também se mede pela forma como protege e estimula as suas crianças e adolescentes!
Para que a mudança seja possível, faz falta o que sempre faltou: conjugação de vontade política, disponibilidade económica e conhecimento científico. Sem isso, a nossa cultura de infância é um puro esquecimento. Ou pior, uma tremenda ignorância. E isso é tudo o que não podemos desejar."  

(Pedro Strecht, in Olha por Mim)

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