quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Depressão vs. Personalidade Depressiva


Tem sido falado que Portugal é o país da Europa com a maior prevalência de doenças mentais. Sabe-se que dois milhões de pessoas, na sua maioria mulheres, sofrem de depressão. Os dados fornecidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) indicam que, em 2020, será esta a patologia que mais despesas acarretará para o Estado. Preocupante? Sim, porque os reais contornos da depressão ainda são significativamente desconhecidos e/ou desvalorizados pela generalidade dos portugueses.
Operacionalizando, sabemos que um indivíduo sofre de depressão quando verificamos alguns destes sintomas: presença de humor depressivo (ou perda de interesse em quase todas as actividades); alterações no peso ou apetite, sono e actividade psicomotora; diminuição da energia; dificuldades em pensar, concentrar-se ou tomar decisões; sentimentos de desvalorização pessoal ou culpa; ansiedade elevada e/ou sensação de pânico; pensamentos frequentes a respeito da morte ou ideação suicida. O afecto principal da patologia depressiva é a tristeza (embora nas crianças o humor possa ser irritável em vez de triste). Não esquecer a face psicossomática da depressão, ou seja, a presença de “dores” do corpo que tantas vezes não são mais do que o espelho das “dores” da alma.
Consoante os autores, vários modelos defendem a origem da depressão como mais dependente ora das estruturas psíquicas internas, ora da experiência. Contudo, todos apontam, com maior ou menor relevo, as inadequações do processo afectivo-relacional com os progenitores como o aspecto central na origem da patologia. As estruturas depressivas são sempre condicionadas por acontecimentos exteriores sentidos por nós com um carácter de insuficiência, ausência, vazio e, quase sempre, mais do que a forma como as coisas realmente se processaram, o que interessa é a maneira como as sentimos.
Quando se fala de estrutura depressiva (ou personalidade depressiva), queremos clarificar que são inúmeros os casos em que, independentemente de não se verificar um quadro depressivo propriamente dito (e impeditivo de uma vida funcional), os indivíduos apresentam uma personalidade com traços declaradamente depressivos, encontrando-se à espreita uma potencial depressão (com tudo o que tem direito). Pintada em escala de cinzentos, numa personalidade depressiva encontramos normalmente uma acentuada dependência de um objecto protector e satisfatório (que se prolonga pela vida fora em relações familiares, de amizade, conjugais, etc), uma baixa auto-estima e self diminuído, e uma culpabilidade interna que espreita, implacável e punitiva, invadindo o sujeito com a responsabilidade de “todos os males do mundo”.
Importa realçar que, quer haja uma depressão propriamente dita, incapacitante, quer haja unicamente uma personalidade de tons depressivos, a necessidade de um acompanhamento psicológico surge sempre na medida em que o indivíduo sinta que o seu funcionamento traz prejuízo ao seu bem-estar.

domingo, 23 de outubro de 2011

Pedrinha (Da chuva)

Chuva, caindo tão mansa,
Em branda serenidade.
Hoje minh'alma descansa.
— Que perfeita intimidade!...


Francisco Bugalho, in "Paisagem"

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

P.S.

mas...
"o coração, se pudesse pensar, pararia"

Pedrinha (Dos "sentimentos pensados")


Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Com o pensamento na crise (e a crise no pensamento)

Estamos em crise. Em traços largos, sabemos que, se um organismo entra em crise, houve uma falha nos seus mecanismos de auto-regulação e de regulação externa. Por vezes, homeoestaticamente, o organismo consegue auto-reparar-se e retomar o seu percurso de desenvolvimento (que, entretanto, ficou suspenso). Outras vezes, atingido um certo limite de desvio e um dado nível de desregulação, o organismo já não tem capacidade de, per si,  se auto-reparar, tornando-se urgente recorrer a uma intervenção externa que ajude na reparação e minimização dos danos dessa mesma crise.
Sabemos que é este o ciclo evolutivo: é decadência, crise e mudança, como destaca o Prof. António Coimbra de Matos. Um sistema, qualquer sistema, num dado momento, entra em declínio (esgota-se, desadequa-se ou torna-se nocivo), instalando-se assim uma crise que exige uma mudança. Essa mudança permite a evolução desse mesmo sistema, reequilibrando-o. Assim foi, repetidamente, ao longo da história da humanidade: na ciência, na religião, na política, na economia. E assim será, naturalmente, no sistema mais complexo de todos, o ser humano, em momentos da vida de cada um de nós, a nível pessoal (interno) e relacional (externo).
E assim podemos dizer que, numa crise, surge a oportunidade de criação de algo novo e sempre mais eficaz (espera-se!). Desde que haja um olhar atento (e ético...!) que compreenda e transforme as causas da crise (não se tente resolver uma crise com os mesmos modelos que a ela conduziram!). Porque uma crise exige mudança e a mudança implica novas formas de pensar, agir e sentir.  A mudança é condição sine qua non do desenvolvimento. Para isso, cada um necessita de usar a sua capacidade de pensar e, fundamentalmente, de se questionar, sobre o papel que tem (porquê demitirmo-nos da responsabilidade do individual que influencia o colectivo?!) na resolução da crise (esta, aquela ou a outra).
Comecemos, como disse, pela mudança das mentalidades e pela resolução das nossas crises internas. Comece-se por interiorizar que a cooperação deve substituir a competição. Colocar a responsabilidade no lugar da culpa, a confiança no lugar da desconfiança, o empreendedorismo no lugar da apatia.  Exige-se uma mudança social. Exige-se uma mudança que toque nas bases, nas fundações. Podemos, talvez, começar por combater a crise dentro de cada um de nós: a crise ética: dos valores; a crise dos afectos: do indivíduo, das famílias. Que a crise lá fora nos leve a pensar sobre a crise cá dentro.

Referência Útil: Coimbra de Matos, A. (2011). Relação de Qualidade: penso em ti. Climepsi.

Pedrinha (Do que é novo)


O prazer com o novo é o motor do desenvolvimento pessoal e colectivo. O medo do novo é sinal de insegurança e causa de paragem do desenvolvimento ou mesmo regressão.

António Coimbra de Matos

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Pedrinha (Das relações criativas)


Não procures alguém que te complete. Completa-te a ti mesmo e procura alguém que te transborde.

Clarice Lispector

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Intimamente


Freud dizia que possuímos um desejo profundo de nos unirmos com o mundo que nos rodeia, estabelecendo uma comunhão íntima com as outras pessoas. Meltzer, psicanalista inglês que sempre se interessou pelo tema da intimidade, falava da solidão e de como a nossa existência se torna mais agradável se for possível vivenciar estados de intimidade.
A intimidade é um estado de comunhão dos afectos, um sentimento de familiaridade, um encontro único e genuíno entre pessoas que partilham as vidas e, fundamentalmente, as almas. Porque é que encontramos pessoas que não são capazes da intimidade, parecendo não se entregar/revelar verdadeiramente a ninguém? Porque, naturalmente, a intimidade acarreta riscos. É, amar é um risco (não será toda a nossa vida uma aventura de risco?). Não deixarmos que ninguém nos toque ou nos veja no mais profundo e íntimo de nós mantém-nos a salvo de algumas desilusões. Pelo menos, aparentemente.
Na realidade, este funcionamento é um mecanismo de defesa. Por medo ou incapacidade, são erguidas barreiras defensivas contra a intimidade, como forma de evitar qualquer tipo de sofrimento emocional. Não acontece de forma consciente e, quem age assim, raramente compreende porque o faz. São defesas inconscientes, frequentemente camufladas por personalidades pretensamente indiferentes e desprendidas. Contudo, honestamente, não resulta. Há um vazio que permanece e que nos mostra que ao amputarmo-nos do que mais belo e singular existe nos seres humanos, a nossa maravilhosa capacidade afectiva, não se encontra nenhuma espécie de felicidade.
Não se faça confusão. O adolescente que se movimenta entre curtes, está em idade natural para isso. Ele experiencia vários objectos amorosos, em busca daquele com quem estabelecerá um dia mais tarde uma relação de intimidade. Estranho será o adulto que diz nunca ter amado ninguém ou o adulto que não consegue fixar-se numa só relação amorosa, entre outros casos. Tendencialmente, ao crescer deixamos de alinhar em relações fortuitas. Aliás, não há nada de gratuito quando duas pessoas se tocam, como afirma o Prof. Carlos Amaral Dias. Essa pretensa gratuitidade que por vezes nos ilude, atinge-se à custa da negação, da negação daquilo que realmente necessitamos, a intimidade.
Para a construção de uma relação, é fundamental que se consiga experimentar e viver as emoções, o amor e o ódio, a ambivalência, o medo ou a ansiedade. A confiança (em nós e nos outros) também é um elemento importante para que nos possamos entregar num encontro com o outro sempre desconhecido, com todos os mistérios e riscos que esse encontro envolve. São capacidades que adquirimos a partir da qualidade do vínculo materno, na experiência mais precoce, e se não as posssuirmos, teremos alguma dificuldade em desenvolver a disponibilidade suficiente necessária para o estabelecimento de uma relação de intimidade.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Pedrinha (Do sonho)

O sonho tem a capacidade de reunir e colocar em imagens humores e emoções ainda não pensáveis.

Antonino Ferro

domingo, 25 de setembro de 2011

Fora da Box

Pedrinha (Das misteriosas possibilidades do amor)


Aprendi que o sentimento do amor não é mais nem menos forte conforme as idades, o amor é uma possibilidade de uma vida inteira, e se acontece, há que recebê-lo. Normalmente, quem tem ideias que não vão neste sentido, e que tendem a menosprezar o amor como factor de realização total e pessoal, são aqueles que não tiveram o privilégio de vivê-lo, aqueles a quem não aconteceu esse mistério.

José Saramago, in "Revista Máxima, Outubro 1990"

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Perspectiva


Convidado a experimentar outras formas de (se) olhar, outros possíveis enunciados sobre a sua experiência, o sujeito vai sendo capaz- assim lho permita o seu aparelho de pensar os pensamentos- de desenvolver em si próprio a capacidade de se interrogar de forma cada vez mais ampla, mais consciente dos seus mecanismos de defesa, da (sua) humana tendência à repetição, da monotonia (no sentido da invariabilidade e ausência de diversidade, mono tonal) muitas vezes mantida pelo sintoma. (...)
(...) O analista interpreta, e o paciente é surpreendido por ser (re)conhecido, ou pela proposta de um nova forma de (se) olhar. E, por vezes, vai ser possível que o ouçamos dizer: “...Que engraçado...nunca tinha pensado nisso...!”

Maria João Regala in “Muda e continua”: reflexões sobre criatividade e disjunção (3º Encontro da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica - Criatividade)

Salut automne!

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Coisas Boas

Matisse - Acrobatic Dancer
 Ou como diria Isabel Abecassis Empis, "Cada um vê o que quer num molho de couves"!

Este corpo que eu odeio

"Eu não gostava de ser tocada, mas era um "não gostar" estranho. Eu não gostava de ser tocada porque ansiava demasiado por disso. Queria que me segurassem com muita força para não partir. Ainda hoje, quando as pessoas se inclinam para me tocar, ou abraçar, ou colocar uma mão no meu ombro, eu sustenho a respiração. Eu viro o rosto. Apetece-me chorar." (Marya Hornbacher in Wasted: A Memoir of Anorexia and Bulimia)

A anorexia é um comportamento muito complexo ponto de vista psicológico. Tem muito a ver com a imagem do corpo, mas não só. Como tanto se fala, a mudança dos padrões estéticos favoreceu o aparecimento de comportamentos deste tipo, contudo, não os explica, porque a problemática é muito mais profunda do que isso.
Com raízes depressivas, esta perturbação do comportamento alimentar que afecta sobretudo o sexo feminino, representa um conflito interno entre o corpo de mulher, um corpo sexuado (devido ao desenvolvimento das características sexuais secundárias na adolescência, como os pelos, o aumento dos seios, a evolução das formas) e o corpo de menina, geralmente idealizado e que a anoréctica tenta preservar.
O comportamento anoréctico assenta na impossibilidade de aceitar que, de repente, nasceu um corpo de mulher e uma condição feminina. Há uma perturbação da sexualidade, tentando através da extrema magreza a anulação de todas as características que representam essa sexualidade (diminuição dos seios, desaparecimento das formas femininas e, no limite, da menstruação, consequência da severa perda de peso nos casos mais graves). O corpo infantil está idealizado e esse corpo infantil dirige “ataques” ao corpo real.
A anorexia não é nunca um comportamento isolado. Associam-se a ela comportamentos maníacos (como a hiperactividade, que surge não só porque a fome actua como um mecanismo excitatório, mas também porque permite manter um desgaste elevado de calorias) ou comportamentos obsessivos (como a limpeza, por exemplo, através da qual inconscientemente se exorcizam as fantasias de sexualidade, encaradas como algo sujo). A questão da perfeição está muito presente na anoréctica, o que explica inclusivamente que esta patologia surja normalmente em jovens aparentemente bem adaptadas, organizadas e, inclusivamente, com sucesso académico ou profissional.
O ódio ao corpo feminino representa, em última análise, um ódio ao corpo materno. Por norma, a relação entre a anoréctica e a mãe é uma relação doente. Aliás, é frequente em intervenções com anorécticas proceder-se, inicialmente, a uma separação da anoréctica do mundo familiar, particularmente da mãe, chamando-se a isso, maternectomia. Em terapia, trabalha-se a separação entre a anoréctica e o objecto materno.
Nesta perturbação, uma das consequências sobre a sexualidade são os estados anorgásticos, ou seja, a anoréctica e, frequentemente, a ex-anoréctica, não obtêm prazer com sua sexualidade. Resolveu-se o problema da imagem do corpo (torna-se possível aceitar o corpo real) mas permanece a má relação com o feminino.
Para tratar mais fundo, a estratégia da “engorda”, por si só, não chega. Quando a jovem se encontra com um peso muito baixo, naturalmente que a primeira fase será para compensar o seu corpo naquilo que ele necessita. Mas o tratamento da anorexia vai muito mais além. Tem de ir.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Ideias em Ordem


Tem sido difícil ser psicólogo em Portugal. Sendo uma profissão muito “jovem”, compreende-se que o processo tem levado o seu tempo. Contudo, enquanto isso, a classe profissional viu-se desprotegida e desinformada (a criação da Ordem dos Psicólogos Portugueses foi uma dura batalha, vencida em Setembro de 2008), estando igualmente desprotegidos e desinformados os cidadãos que dela precisaram e a ela recorreram.
Não percebendo sequer a importância e as reais competências do psicólogo como técnico especializado, o Estado não cumpriu, de todo, a sua função como regulador da profissão, durante todos estes anos em que a tarefa lhe competiu. Regidos por uma ausência de legislação competente, os direitos e os deveres do psicólogo nunca foram, igualmente, concretamente definidos, dando azo a uma espécie de anarquia que não só lesa os utentes (que o Estado também deveria proteger) mas também a classe profissional, na sua credibilidade e, consequentemente, no seu estatuto. Para além de pouca, a legislação nunca foi revista desde os anos 90 e hoje não há psicólogos suficientes nas escolas, nos centros hospitalares e nos cuidados de saúde primários (mencionam-se apenas a Educação e a Saúde pois foram as únicas áreas para as quais o Estado legislou a carreira de psicólogo). Proporcionou-se, em função de uma crescente necessidade sem resposta dos serviços, um abuso desmedido dos regimes de voluntariado em Psicologia. Na ausência de instrumentos legais com que se defender, os psicólogos têm vindo a desenvolver trabalho de forma maioritariamente precária, entregues, não ao Estado mas, como se diz, à bicharada.
Criada a OPP, restam ainda algumas (e não menos importantes) microbatalhas por travar, essas já muito dependentes também de uma necessária divulgação nacional de qualidade sobre o mercado da Psicologia. Continua a ser imperativo vincar todas as possibilidades de intervenção em Psicologia e especificamente em Saúde Mental, um pilar fundamental de qualquer sociedade dita desenvolvida. Continua a ser imperativo sensibilizar o público para algumas noções básicas e fomentar uma consciencialização generalizada do que é a Psicologia, para que serve e tudo aquilo que ela permite compreender e transformar. Em Portugal, muitos aspectos se poderiam melhorar se as políticas do Estado se baseassem num enquadramento, compreensão e intervenção psicossocial das situações. Pensemos sobre a enorme quantidade de baixas médicas relacionadas com a depressão e outras perturbações emocionais que condicionam e impedem a produtividade dos trabalhadores. Pensemos quão mais simples seria enquadrar e lidar com a questão das dificuldades de aprendizagem, abandono escolar e iliteracia. Ou ainda quão mais útil intervir atempadamente na questão da criminalidade, da delinquência, da toxicodependência, da saúde materna e saúde infantil ou mesmo da violência doméstica. Entre tantas outras questões que se enraizam em aspectos psicológicos do ser humano.

domingo, 4 de setembro de 2011

Lazy Sundays

Pedrinha (Do amor incondicional)


“O amor incondicional é o que não obedece à condição de ser retribuído; tão-só isso. Não é um amor incomensurável, desmedido e absurdo – como pensam os aleijadinhos narcísicos. É apenas um amor gratuito, que não cobra, não exige nada em troca. É o amor genuíno. É amor; e não sedução, manipulação ou perversão (ódio travestido de amor).”

Nota: [No amor materno, bem como na relação analítica]

António Coimbra de Matos (in Relação de Qualidade: Penso em ti)

sábado, 3 de setembro de 2011

Era uma vez uma família


“Uma criança satisfeita brinca livremente na presença confiante dos pais, sem precisar de estar permanentemente colada a eles. Ou seja, a boa relação com os pais permite-lhe fazer descobertas por conta própria e estabelecer novas relações (diversificando a forma de se relacionar com vários objectos e ampliando o seu mundo de interesses). Ao mesmo tempo, por sua vez, também permite , com facilidade, que os pais se relacionem entre si e com outras pessoas, aceitando com agrado que os pais também tenham os seus próprios interesses. Assim, convivem uns com os outros, respeitando a condição de serem cada vez mais separados e diferenciados uns dos outros. Gostam de estar com os outros, mas não se perseguem – de vez em quando aparecem, para trocar uma graça, para revelarem o afecto que sentem ou quando alguma coisa os ameaça; para logo depois seguirem caminho, seguros uns dos outros (do amor que os une, da certeza que permanecem fora de perigo). E assim se funda a verdadeira intimidade, semente de novos amores; experiência adquirida nas boas relações de infância, ou mais tarde na relação terapêutica.”

Maria do Rosário Belo* in Lutos, perdas, desafios e conquistas, na vida e no processo analítico
*Psicanalista associada da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Elogio da sombra


A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
pode ser o tempo de nossa felicidade.
O animal morreu ou quase morreu.
Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que não são ainda a escuridão.
Buenos Aires,
que antes se espalhava em subúrbios
em direção à planície incessante,
voltou a ser La Recoleta, o Retiro,
as imprecisas ruas do Once
e as precárias casas velhas
que ainda chamamos o Sul.
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e se parece à eternidade.
Meus amigos não têm rosto,
as mulheres são aquilo que foram há tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isso deveria atemorizar-me,
mas é um deleite, um retorno.
Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,
os atos dos mortos,
o compartilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho.
Breve saberei quem sou.
Jorge Luis Borges

Coisas Boas

Henri Matisse - Music

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Toque

Brinca comigo


É transversal a todas as culturas, a imagem da criança que brinca. Brincar é muito mais do que uma mera distracção ou entretenimento. É a forma privilegiada de expressão emocional e, mais ainda, uma tarefa de desenvolvimento que permite o treino de competências de todas as ordens (fisicas, sociais, emocionais, cognitivas). Brincar é um trabalho fundamental para que se tenha mais sucesso na adaptação posterior à realidade. Freud foi pioneiro ao propor uma compreensão do brincar. Dizia então que o sonho era o caminho real para o inconsciente do adulto e que o brinquedo era o caminho real para o inconsciente da criança. Melanie Klein, a partir dos estudos de Freud, aprofundou o significado da actividade lúdica para a criança, elaborando um corpo de conhecimentos, teóricos e práticos, sobre o entendimento e o uso do brinquedo como recurso terapêutico e de desenvolvimento da criança. Piaget, já mais tarde, destacou três períodos na evolução do brincar, um primeiro período onde se brinca com o corpo (num exercício sensório-motor), um segundo período em que o brincar se torna simbólico (recorrendo a símbolos, uma criança desenvolve a capacidade de fantasiar e fazer-de-conta, tão fundamental) e, um terceiro período, dominado pelos jogos de regras, em que se brincam os limites e as obrigações comuns, criadas e cumpridas em grupo. Haverá momentos em que brincará a sós, num recolhimento essencial e em relação consigo, outros em que brincará acompanhada, em relação com os outros.
Brincar é uma experiência criativa. Brincando, a criança é soberana, colocando a realidade à disposição das suas fantasias. O brincar é lúdico e, ao mesmo tempo, uma coisa séria. É muito engraçado observar a concentração com que uma criança é capaz de brincar e quão importantes são todos os contornos das suas brincadeiras. Uma criança que não brinca está (ou foi), por algum motivo, impedida de um acto instintivo e primordial.
O desenvolvimento infantil espelha-se no brincar. A criança, quando brinca, coloca o seu mundo interno na brincadeira, brincando as suas aquisições, as suas ansiedades, brincando também as suas zangas e a sua agressividade. Repete e elabora experiências emocionais importantes através da brincadeira. O desenho, uma forma particular de brincar, é mais um espelho do mundo interno da criança. Enquanto pequenos, os pensamentos e as emoções são mais facilmente comunicados pelo traço do que pela palavra (porque a evolução corpo à mente leva o seu tempo).

Naturalmente, é, assim, o meio privilegiado de contactar com a criança e entrar no seu mundo privado. Observando o brincar, brincando com ela e dando um sentido à brincadeira. Como disse Winnicott (1971), “ é preciso não esquecer que brincar é uma terapia em si”.

sábado, 6 de agosto de 2011

Pedrinha (Do paradigma relacional)


O paradigma actual, na física como na psicologia, não é o dos corpos ou entidades mas o das relações. A matéria existe em relação com outras matérias.

António Coimbra de Matos

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Pedrinha (Do que eu sou)

O importante é aquilo que eu sou para mim próprio. O que eu sou. O que eu fui. Ou serei. O que é que queres ser? O importante é sermos autênticos. É isso que nos faz ser únicos. Somos incutidos a ser milhões de coisas mas só somos aquilo que realmente queremos. Eu sou o que eu dou. Eu dou o que eu sou. (...) Eu sou o que eu sou.

Sam the Kid (O que eu sou)

Sweet silly season


sábado, 30 de julho de 2011

Pedrinha (de Santo Agostinho)

Afinal, a psicanálise não é só feita de palavras, é feita de afectos, de emoções, de relação. É que sem isso, para parafrasear Santo Agostinho, palavras são apenas palavras, ou seja, o som e o ruído das palavras. Falar é outra coisa.

Carlos Amaral Dias

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Lendo nas entrelinhas


A leitura é actualmente considerada uma ferramenta insubstituível e indispensável, que permite aos indivíduos aceder, vida fora, a uma grande quantidade de experiências e conhecimentos. É primordial no processo de aprendizagem e no sucesso escolar/profissional e, como tal, os estudos sobre esta competência têm surgido e proliferado significativamente nas últimas décadas, conduzindo inclusivamente a algumas medidas que revelam, pelo menos, alguma sensibilidade ao tema, como, por exemplo, a implementação do Plano Nacional de Leitura (PNL).
Tornou-se imperativo, ao longo dos tempos, compreender os modelos de aquisição de leitura e os processos segundo os quais tudo acontece, bem como analisar as metodologias de ensino à luz desse conhecimento, de modo a poder agir mais adequadamente. De uma maneira geral, os estudiosos realçam de forma unânime a existência de duas vertentes na leitura: a descodificação e a compreensão. O que caracteriza o processo de descodificação é o conhecer e distiguir visualmente e auditivamente as letras, relacioná-las com os sons que representam, juntar grafemas formando palavras e identificá-las e pronunciá-las como entidades globais. Em suma, a descodificação implica a transformação dos grafemas em fonemas, identificando e reconhecendo palavras utilizadas correntemente na comunicação entre indivíduos. Por sua vez, a leitura de compreensão é um processo posterior à descodificação e, ainda, bem diferente nas suas características e objectivos. O objectivo é permitir ao indivíduo ler palavras, frases e textos, para lhes extrair um significado, interpretando, apreciando e servindo-se da sua mensagem para adquirir e criar conhecimento. As palavras deixam de ser consideradas e interpretadas isoladamente, e passam a ser perspectivadas como partes integrantes da frase e do texto, onde têm a sua função e adquirem significado específico. Assim que dominamos as técnicas de descodificação, pômo-las, agora, ao serviço da compreensão da mensagem escrita, que depende, também, do nosso desenvolvimento linguístico e capacidades cognitivas.
As dificuldades na aquisição da leitura continuam a ser uma das principais causas das retenções no 1º Ciclo (e do encaminhamento dos alunos para Serviços de Psicologia e Orientação). Este insucesso influencia, por vezes de uma forma decisiva, a aprendizagem em inúmeras outras áreas disciplinares, para as quais o domínio desta competência é fundamental. Não raras vezes condiciona o percurso escolar do aluno e, consequentemente, desencadeia e alimenta um conjunto de efeitos negativos, como o desinvestimento face à aprendizagem, problemas comportamentais e afectivos. E assim sendo, é necessário que estas situações sejam sinalizadas e avaliadas de forma a desenvolver intervenções eficazes e contornar, de raiz, uma das principais causas do insucesso escolar.

Insights

Primeira noite de Verão



Comecei a escrever numa noite de Primavera, uma incrível noite de vento leste e Junho. Nela o fervor do universo transbordava e eu não podia reter, cercar, conter – nem podia desfazer-me em noite, fundir-me na noite. (...)

Sophia de Mello Breyner Andresen  

terça-feira, 26 de julho de 2011

Poema


Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

Manuel António Pina, in "Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo. Calma é Apenas um Pouco Tarde"

domingo, 24 de julho de 2011

Beautiful People


The most beautiful people we have known are those who have known defeat, known suffering, known struggle, known loss, and have found their way out of the depths. These persons have an appreciation, a sensitivity and an understanding of life that fills them with compassion, gentleness, and a deep loving concern. Beautiful people do not just exist.

Elizabeth Kübler-Ross

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Coisas Boas (The sweetest thing)

Psiquiatras, Psicólogos, Psicoterapeutas e Psicanalistas


Existe, não raramente, alguma confusão relativamente às diferenças entre um psiquiatra, um psicólogo, um psicoterapeuta e um psicanalista. Embora sejam, todos eles, profissionais de saúde mental, há diferenças ao nível da formação académica, da compreensão das situações clínicas, bem como no que respeita às intervenções terapêuticas.
O psiquiatra é um profissional formado em Medicina e com posterior especialização em Psiquiatria. O conhecimento do psiquiatra concentra-se fundamentalmente no diagnóstico de comportamentos desviantes. Utiliza como linha de base um sistema de classificação e diagnóstico baseado em manuais (ex: DSM-IV – Manual Diagnóstico e Estatístico das Perturbações Mentais) e a principal forma de intervenção utilizada por estes profissionais é a prescrição de medicamentos como antidepressivos, ansiolíticos e outros psicofármacos.
O psicólogo é um profissional formado em Psicologia, a quem compete o estudo do funcionamento humano, bem como a avaliação e tratamento das perturbações associadas. A sua área de intervenção foca-se no indivíduo e nos seus processos internos, mas pressupõe também uma compreensão alargada do seu funcionamento familiar e social, intervindo também no ambiente envolvente. A formação em Psicologia é tão diversa que se divide, quase de início, na área clínica, organizacional, educacional ou criminal. O conhecimento do psicólogo pode, assim, aplicar-se a uma série de áreas da sociedade, consoante a sua formação (neste caso, saúde mental, organizações e empresas, escolas e agentes educativos ou área forense, entre inúmeras outras relacionadas). Quando se dedica à área clínica (aquela que serve a nossa comparação), em particular, o psicólogo tem legitimidade de realizar uma série de intervenções psicológicas mas, em situação de consultório e prática clínica, deve continuar a sua formação e especializar-se como psicoterapeuta para uma intervenção mais ética e eficaz com os pacientes. 
O psicoterapeuta domina um corpo de técnicas que utilizam métodos psicológicos para analisar e intervir em estados emocionais, comportamentais e outras perturbações causadoras de mal-estar físico, psicológico ou social e de outras problemáticas por vezes menos evidentes. Na psicoterapia, através de uma relação muito particular que é estabelecida entre os dois intervenientes conduz-se o paciente numa viagem em que este se torna mais consciente de Si (do que faz, pensa e sente) e através da qual se pretende aliviar algum sofrimento e proporcionar a mudança. Importa realçar que, embora a psicoterapia derive de teorias psicológicas, um psiquiatra com formação adicional nesta área (e não apenas formação médica) pode, também, utilizar a técnica.
O psicanalista é um profissional com uma especialização em psicanálise (normalmente um psicólogo ou um psiquiatra, que faz, posteriormente, formação adicional em psicanálise). A teoria e técnica da psicanálise têm nuances particulares que exigem uma formação prolongada por parte do profissional (o próprio processo psicanalítico é longo e aprofundado) em entidades competentes. Visa o desenvolvimento da capacidade de pensar analiticamente sobre si próprio e sobre o mundo e proporciona uma notável expansão e crescimento do sujeito. O psicanalista (ou analista, forma abreviada) opera igualmente em contexto clínico, intervindo com a sua técnica, a psicanálise (ou análise), que se assemelha em alguns pontos a uma psicoterapia, embora tenha particularidades muito específicas.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Liberdade

Quem prende a água que corre,
É por si próprio enganado;
O ribeirinho não morre,
Vai correr por outro lado.

António Aleixo (Quadras Populares)

sábado, 16 de julho de 2011

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Pedrinha (Da concavidade)


A concavidade não se diz, não se anuncia, pertence ao lugar bom do não dito; sente-se, pressente-se e tem uma magia – quanto mais se dá lugar ao outro, mais se tem lugar para ele. Talvez a concavidade seja a capacidade de amar.

Maria João Saraiva (Até mim: vivência da psicanálise)

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Pensar os pensamentos

Mesmo suponho a existência de um aparelho de pensar os pensamentos bastante eficaz, mesmo assim, existem ainda muitos pensamentos que o sujeito não é capaz de pensar sozinho e que são colocados no interior do analista para ele pensar. Uma das principais funções do analista é pensar aquilo que o analisando não é capaz de pensar.

Carlos Amaral Dias (Freud para além de Freud)

terça-feira, 12 de julho de 2011

Quente

Pedrinha (Das falsas verdades)

Então, diz coisas deste tipo: “não me deixou marca”, “não era uma criança dada a dramas”, “não sou uma pessoa romântica”. Nada disto é verdade, mas ele pensa assim, pois foi assim que organizou a sua autobiografia: depurou-a, ou amputou-a, do conteúdo emocional perturbador, do sabor amargo ou do molho picante.

António Coimbra de Matos
07.11.2010

domingo, 10 de julho de 2011

Pedrinha (Do reinventar)


O amor é coisa fugidia     
Mas recria-se dia a dia

António Coimbra de Matos (Sintra, 1950)

sábado, 9 de julho de 2011

Vai onde te leva o coração


A escolha de uma área profissional é um dos momentos mais importantes no percurso escolar de um jovem. Chegando ao 9º ano de escolaridade, o adolescente vê-se a braços com uma decisão relativa à área de estudo que pretende aprofundar durante os seguintes anos de aprendizagem. É o momento da primeira escolha.
 Naturalmente, nem todos os jovens sabem com a mesma determinação aquilo que querem para a sua vida. É frequente existirem indecisões, angústias e receios. Nessa altura, recomenda-se que o aluno realize provas de orientação vocacional, que o ajudem a esclarecer alguma dúvida bem como a tomar uma decisão mais madura e consciente. E recomenda-se mesmo aos jovens mais “esclarecidos” pois, independentemente de parecer que o adolescente sabe muito bem aquilo que quer, não podemos esquecer que está em plena processo de construção da sua identidade e que esse processo nunca é uma equação simples.
O objectivo fundamental da realização destas provas é a recolha de dois tipos de informação fundamental, os interesses e as aptidões. Os interesses dizem respeito às áreas pelas quais o jovem sente maior motivação e gosto e também aos seus sonhos relativamente à sua realização profissional. As aptidões estão relacionadas com as suas reais capacidades em cada uma das possíveis áreas de escolha. Seguidamente, há toda uma panóplia de factores que devem ser analisados conjuntamente pelo jovem e psicólogo durante a entrevista, tais como a existência de algumas discrepâncias entre as aptidões e os interesses, as suas expectativas e os seus receios, a qualidade da informação que o adolescente possui relativamente aos cursos e ao mercado de trabalho e, ainda, não raras vezes, perceber se alguns desejos (nem sempre explícitos) dos pais estão ou não a criar ambivalência no jovem.
Seguindo em frente, uma nova escolha, semelhante a um estreitamento, é exigida no final do 12º ano de escolaridade. Uma escolha específica. Para além das dificuldades apontadas anteriormente, inerentes a qualquer processo de decisão, aqui se reúnem outro tipo de dúvidas, nomeadamente a questão das médias/requisitos de entrada na Universidade, uma grande oferta de Universidades (ou cursos de outra ordem, nunca esquecendo a quantidade de jovens que preferem outro tipo de especialização), as saídas profissionais, ou mesmo a pressão sentida quando não sabem ainda ao certo qual a actividade profissional em particular que querem escolher.
As variáveis emocionais são de grande importância porque, para que o aluno obtenha sucesso académico numa dada área, é necessário que exista, para além dum investimento intelectual, um investimento afectivo e emocional que funcione como catalisador da vontade de aprender. E uma situação de indecisão não é sinónimo de fracasso ou desinteresse no futuro, havendo sempre a alternativa de recorrer a técnicos especializados que poderão iluminar alguns recantos escuros nesta importante fase de vida.

domingo, 3 de julho de 2011

Coisas de amigos


Tinha-se perdido de si mesma, mas a sua amiga sempre soubera qual era o lugar dela, o valor dela e não saiu de perto enquanto ela não voltou a reconhecer-se através do olhar da amiga, do seu afecto; primeiro, ela era só um punhado de dúvidas, depois foi sendo capaz de reconhecer os seus contornos, naquilo que a sua amiga lhe dizia e, mais além, preenchendo esses contornos com bocados de vida sua; foram tempos em que, “cega” a si própria, se foi buscar ao interior de quem a fazia existir, de quem a fazia existir tão perto do que era ela. E a amiga nunca saiu de lá, sempre a fazê-la sentir o valor que a vida dela tinha, o quanto ela era valiosa, nunca saiu de lá até estar segura de que ela já se reconhecera e já se encontrara; aí sim, sabia que, embora ainda “descalça”, iria fazer caminho. Nunca saiu de lá; mesmo agora, que voltava.

Maria João Saraiva (in Até mim: Vivência da Psicanálise)