terça-feira, 19 de abril de 2016

O Medo do Sucesso (Ou a Paz dos Perdedores)

Robert Montgomery

         No outro dia contavam-me que Fernando Mamede, atleta do Sporting Clube de Portugal, possuía enorme e reconhecido talento. Que apesar de todos os recordes internacionais por ele batidos no atletismo, não conseguiu vencer algumas barreiras psicológicas, medalhando apenas numa grande competição internacional. Contaram-me que um dos momentos mais dramáticos do seu percurso deu-se em 1984, nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, nem um mês depois do seu recorde mundial nos 10.000 metros. A pressão nos ombros de Fernando Mamede era enorme pois era já o grande favorito ao ouro olímpico, porém, a meio da corrida, o atleta abandonou a prova, para espanto de todos os que assistiam.
Mas se muitos ficaram espantados, certamente Sigmund Freud não ficaria. Uma das coisas que ele nos ensinou na sua vasta obra, através do estudo de pacientes neuróticos, é que os erros catastróficos e as explosões na vida particular normalmente não acontecem após um fracasso, mas sim após uma vitória. De facto, encontramos situações semelhantes não só no mundo da alta competição mas também no mundo empresarial, artístico e claro, na esfera relacional de cada um de nós. Há pessoas que parecem não suportar muito bem uma coisa fantástica: seja uma carreira fulgurante ou um casamento feliz. Porém, ninguém estraga o que fez ou trabalha contra si mesmo conscientemente. Com raízes inconscientes, o "medo do sucesso" associa-se geralmente a duas questões: ansiedade e/ou culpa.
O sentimento de culpa perante o sucesso, explicação que Freud mais explorou, pode ter raízes no fantasma do triunfo sobre os próprios pais, seja uma superação académica, financeira, romântica ou social. Pode até dar-se o caso de haver um medo inconsciente de retaliação, sob a forma de perda do amor, zanga ou inveja, preferindo o sujeito manter-se num nível “igual ou inferior” aos mesmos, evitando essa “competição”. Outra explicação para a culpa, também com raízes antigas, prender-se-á talvez com a baixa auto-estima, desvalorização pessoal e sentimento de desmerecimento. Como se um “sabotador interno” (citando Fairbain) nos impedisse de concretizar um feito por não nos acharmos dignos de tal.
Entre os factores explicativos para estes actos “auto-destrutivos” encontramos também a ansiedade: que nasce de uma sensação de insegurança, incapacidade ou medo do crescimento (no sentido de tudo o que é expansão). É a angústia de não estar à altura, é o querer ser sempre mais “pequenino”. É o medo de conseguir e depois perder. Toda a felicidade e/ou poder envolve tensão, riscos e responsabilidade. E muitos preferem a chamada "paz dos perdedores".


domingo, 3 de abril de 2016

O Valor das Coisas

 
Ilustração Michael Kirkham/ Heart


           Na era moderna iniciou reinado “Sua Majestade, Os Mercados” e, consequentemente, aquilo a que podemos chamar a mercantilização das coisas. A mercantilização deriva em grande parte da difusão do capitalismo global e da sua tendência para a quantificação/qualificação de tudo, o que acontece muitas vezes de forma redutora. E assim chegamos a uma questão importante: a disseminada confusão entre o preço e o valor das coisas.
Segundo a teoria económica, o preço de determinado bem resulta do confronto, no mercado, entre a sua procura por parte dos consumidores e a sua oferta por parte dos produtores.  Tem também que ver com o processo de concepção do produto mas é cada vez mais fundamentando no que o mercado “pensa” e “diz” que algo vale. O preço é ainda ditado pela moda, pelo marketing e pela publicidade. O preço é algo que é atribuído, a sua origem é externa, o que implica que nem sempre o preço de algo é equivalente ao seu valor.
Valor é um conceito diferente. Há coisas muitos valiosas que nem sequer têm preço e, inversamente, há coisas muito caras sem grande valor. Valor é outra coisa. Se o preço é ditado, o valor é intrínseco. O valor vem de dentro, é uma propriedade independente do exterior. O valor não está dependente de nada, está dissociado (ou deveria estar) dos mercados, das modas, da procura e da publicidade. É também uma característica bastante subjectiva: difere consoante o olhar de cada um.
          O olhar mercantilista da era moderna conduz, talvez, à confusão. Observamos que as pessoas vão sendo sucessivamente influenciadas pelo valor que o mercado atribui às coisas (preço) e não pelo valor intrínseco das mesmas. Ou seja, as pessoas vão perdendo a sua capacidade crítica, o seu livre arbítrio e mesmo a sua identidade, deixando de escolher (ou mesmo saber) o que querem e passando a escolher o que os mercados aprovam ou recomendam.
          Depois, e talvez mais grave, deu-se uma aplicação do mesmo raciocínio às próprias pessoas, num processo que Carlo Strenger chamou a “mercantilização do Eu”. É hoje possível dizer que muita da nossa angústia narcísica (qual é o meu valor?) talvez derive do facto de vermos pessoas procurar o seu “preço” ao invés do seu valor. Querem saber o valor que o “mercado” lhes atribui quantos amigos, que estatuto, quanto sucesso, que ordenado, quantos “gostos” quando na verdade, aquilo que nos permite gostar de nós é sabermos o nosso valor, i.e., sabermos quem somos e o que nos torna diferentes: diga o mundo o que disser, recomende-nos o que quiser, pague-nos o que pagar, goste de nós ou não.