quinta-feira, 23 de julho de 2015

Faça você mesmo: Sobre a auto-suficiência

Liekeland


De há muito tempo para cá que o Homem tem tentado, por todos os meios, ser cada vez mais auto-suficiente. Precisar, cada vez menos, do que quer que seja. Estar preparado para tudo e superar todos os desafios. De quanto menos recursos precisar (materiais ou humanos), melhor. As palavras de ordem são, por exemplo, “faça você mesmo”, “guia de auto-ajuda”, “self-service”. Cada vez mais poderosos, cada vez mais competentes ou, bem vistas as coisas, cada vez mais sós.
É. No dia em que eu achar não precisar do outro para mais nada, morrerei: encerrado em mim mesmo, tendo por companhia a solidão ou a omnipotência. No filme “Into The Wild”, baseado numa história verídica, percebemos que, em última análise, é a fuga do mundo e dos outros que fazem parte do mundo que acaba por destruir Christopher McCandless: o isolamento, confundido com autonomia, mata. Mais cedo ou mais tarde, precisamos sempre de alguém. Somos seres gregários, isto é, que se agregam. E isso tem funcionado bem, ao longo de toda a humanidade. Cooperamos, coligamos, colaboramos, ou seja, relacionamo-nos. Somos, por todos estes motivos, seres que interdependem. Querer negar isto é negar a condição humana. “Eu não preciso de ninguém” é querer tornar-se bicho ou máquina, sendo que nem alguns bichos conseguem sobreviver sós e que mesmo uma máquina precisa de alguém que a manobre, a dado momento.
Nascemos a precisar do outro e provavelmente, morreremos precisando do outro. Durante o caminho, percorremos alguns trilhos de autonomização, de crescimento e diferenciação, mas vivemos sempre numa autonomia relativa. Perceber e aceitar isto é poder também serenar. Perceber que isso está na nossa natureza, desde os primórdios da espécie. Que não ser auto-suficiente não é um crime, pelo contrário: é a condição humana no seu melhor.
Sem dúvida que no outro extremo se pode encontrar o excesso de dependência, a incapacidade de ser autónomo e de tomar conta da nossa vida. São histórias de meninos pendurados no pescoço de suas mães ou sentados em qualquer colo que lhes apareça pela frente. São histórias de crescimentos boicotados, suspensos ou esburacados. Sem dúvida, portanto, que o caminho da saúde mental passa por uma autonomização “suficientemente boa” e consequente crescimento pessoal. Sem a capacidade de estar só, será difícil construir uma vida adulta de qualidade. Como ouvi recentemente, sem sermos um bom ímpar, não seremos um bom par. O problema então não será depender do outro, mas em que medida dependemos. Há algures, parece, uma medida mais ou menos saudável para isto de precisarmos sempre de alguém. 

terça-feira, 7 de julho de 2015

O Cansaço e Outras Máscaras da Depressão

Álvaro de Campos

Apesar de haver cada vez mais sensibilidade relativamente aos assuntos do foro da saúde mental, a verdade é que alguns sintomas depressivos continuam a ser desvalorizados e/ou a passarem despercebidos. Estar deprimido não é somente o abismo negro, desesperante, que muitos imaginam. Não é obrigatório chegar ao ponto de apresentar tendências suicidas; podemos estar deprimidos e continuar a funcionar nos vários níveis da nossa vida, embora num ritmo e frequência diferentes. Ou seja, estar deprimido não implica necessariamente abandonar o trabalho ou negligenciar a higiene pessoal ou da casa e as relações familiares. Muitos dos tantos que trabalham todos os dias, tomam banho e estendem a roupa todos os dias, vão buscar os filhos à escola todos os dias, apresentam sinais de depressão, em maior ou menor grau, que não os incapacitam na totalidade, mas que diminuem a sua felicidade e qualidade de vida:

1.       O “cansaço” crónico: abatimento, inércia, apatia, “preguiça” de fazer as coisas, ausência de vitalidade, de dinamismo, de energia;
2.      A falta de interesse e de alegria: ausência de entusiasmo pelas coisas, falta de apetite pela vida, dificuldade em sentir prazer nas mais diversas circunstâncias, levando, por vezes, ao isolamento social e relacional;
3.      A baixa auto-estima e desvalorização pessoal: sentimento de que ninguém gosta de nós, que não temos valor e que não fazemos nada de jeito;
4.      A culpabilidade: perda da capacidade de distinguir uma acusação justa de uma acusação injusta, aceitação acrítica das acusações que nos são dirigidas, responsabilização excessiva ou mesmo ilógica perante as situações que não dependem de nós;
5.      A perda da líbido, do desejo sexual: dificuldade ou incapacidade de retirar prazer, gozo, da relação com o outro, às vezes justificada com o dito “cansaço” ou pela acusação do outro;
6.   A perda de apetite ou alimentação descuidada: pouca vontade de comer e hábitos alimentares nocivos e/ou nutricionalmente pobres (à base de “comida preguiçosa”, como por exemplo, snacks, “fast-food”, guloseimas);
7.      A insónia e/ou fadiga: turbulência nos padrões de sono (dificuldade em adormecer, sono interrompido, ou excesso de horas de sono mas pouco revigorantes);
8.      As dores físicas: queixas sistemáticas de sofrimento físico, seja ósseo, neurológico, visceral ou muscular, com presença de dores mais ou menos resistentes aos tratamentos médicos, muitas vezes sem diagnóstico clínico que justifique a sua presença;
9.      A memória fraca: dificuldade em lembrarmo-nos detalhadamente dos acontecimentos e atenção diminuída/empobrecida sobre a vida, muitas vezes atribuída à “distracção” ou “cansaço”;
10.   A indecisão: um querer e não querer ou nem sequer saber o que se quer ou para onde se vai, consequência directa da dificuldade em se ouvir a si mesmo ou de confiar em si mesmo.


quarta-feira, 1 de julho de 2015

Da solidão necessária


A espécie humana é social, gregária, mas é também reflexiva e, nesse aspecto, solitária. Como diz uma professora e colega que estimo, "a vida está nos paradoxos". Porém, tantas vezes parece quase necessário justificar esse lado de quem privilegia estar só/sossegado num mundo que nos entra loucamente pela "porta" dentro todos os dias. Há umas décadas atrás, era diferente. Sabíamos, aceitávamos e não questionávamos que muitos momentos eram bons para se estar só. Hoje, na era das redes sociais e dos "open spaces", o solitário não "existe". Mais, se existe, é desrespeitado. Nem sempre quem se coloca à margem é amado e/ou considerado da mesma forma. Esta é uma questão que apenas faz sentido pensar aqui, neste mundo dito ocidental, onde a acção passou a ser mais valorizada que a contemplação e se esquece, tantas vezes, que a solidão também pode ter muitas vantagens. É no espaço de encontro connosco que podemos "ser", por oposição ao "fazer". E é quando podemos "ser" que nos surgem as melhores criações. É também na ausência que interiorizamos a presença, que aprendemos a guardar as coisas dentro de nós. E sem esses espaços de encontro connosco dificilmente podemos saber estar, verdadeiramente, com o outro.

O Viver Criativo


Uma flor pode ser apenas uma flor ou pode ser uma flor que eu decidi usar para um fim qualquer. Por isso, essa flor destaca-se de todas as outras e eu crio uma relação com ela diferente de todas as outras. Num certo sentido, eu “criei” aquela flor (naquilo que ela representa para mim e que não representa para mais ninguém). Ela torna-se símbolo de algo. Ficará embebida numa emoção, numa memória, num pensamento ou sensação. Sobre a sua rosa, dizia o principezinho às outras rosas: “Claro que para um transeunte qualquer, a minha rosa é perfeitamente igual a vocês. Mas, sozinha, vale mais do que vocês todas juntas porque foi a ela que eu reguei.” Isto é a atribuição de subjectividade ao mundo objectivo e chamamos-lhe o “viver criativo”. Ou, de uma forma mais simples, o brincar.
Há esta ligação a preservar, entre a vida objectiva (a realidade compartilhada) e a nossa vida subjectiva (a minha leitura da realidade). O grito de uma gaivota pode ser (e é) apenas o grito de um gaivota, aquele grito ouvido no mesmo preciso momento por uma centena de pessoas, mas é também, para mim e só para mim, o trampolim para emoções, memórias, pensamentos e sensações; passadas, presentes ou futuras. Talvez, então, aquilo que mais dá significado à nossa vida seja essa arte do “viver criativo”, “brincando” com uma flor, o grito de uma gaivota ou uma pedra no caminho. É o dom de transformar um mundo que já existe. Transformá-lo, na perspectiva em que uma coisa passa a significar outra coisa, simultaneamente objectiva e subjectiva: muito mais rica de simbolismo e de substância.
Quando a vida é demasiado concreta, falta significado às coisas. Falta viver criativamente. Reinventar o mundo e, através disso, reinventarmo-nos. O viver criativo cresce em nós, desde pequenos, se temos a possibilidade de brincar. Quando brincamos, nada é o que é: um mata-moscas pode ser uma arma, uma formiga pode ser um soldado, um caldo de folhas e flores pode ser uma sopa. Nesse espaço transicional entre o que é e o que pode ser, vive-se criativamente. E essa arte permanece por toda a vida.
O viver criativo é a poesia do quotidiano. É abrir os olhos para o estético e para o sensível e deixá-lo ligar-se ao concreto. É também e ainda, possibilidades sem fim. É expansão pois, no limite, nada jamais se repetirá: chegamos ao mais importante, todas as relações de amor podem ser diferentes todos os dias. Viver criativamente é perceber essa potencialidade em todas as coisas. E na nossa experiência, na nossa interioridade, nada será apenas aquilo que é, mas será sempre uma espaço de transição entre o que é e o que pode ser. E que seja um lugar onde fomos, ou poderemos ainda ser, mais felizes.