sábado, 26 de novembro de 2011

O admirável ser humano



Não existe, no mundo vivo, espécie mais dependente dos outros do que a espécie humana. É na primeira infância, fase de dependência absoluta, que esta característica se afirma de forma mais evidente. O bebé e a mãe constituem uma unidade e, sem um cuidador, o bebé não sobrevive. Porque tem a nossa espécie esta particularidade, tão incontornável?

Primeiro, as justificações da Biologia: o bebé humano nasce com um desenvolvimento neuromotor muito inferior ao dos bebés de outras espécies animais. Exemplificando, para que um bebé humano nascesse com o mesmo nível de desenvolvimento de um primata, seria necessário mais um ano de gestação (o que corresponderia a uma gravidez de 21 meses). Assim, nascendo com um desenvolvimento “insuficiente”, entende-se que o bebé humano seja muito mais dependente dos cuidados maternos. Felizmente, a Natureza alinha os detalhes e constatamos que, normalmente, nasce apenas uma cria humana por cada gestação, e não uma ninhada de filhos, como acontece com outras espécies animais. No caso de nascimento de gémeos, sabem as mães melhor que ninguém quão complicado é cuidar de dois bebés em simultâneo.

Depois, para lá das questões neurológicas ou motoras, existe a complexidade singular da mente humana e do seu processo de desenvolvimento afectivo, relacional e social. O bebé humano precisa de cuidados muito particulares (e exigentes!) para o bom desenvolvimento da sua estrutura psíquica e das suas capacidades cognitivas, afectivas e sociais. Esta interacção única entre a mãe e o seu bebé tem alguns contornos muito funcionais (alimentação, higiene, saúde) mas também tem contornos relacionais (amor, afectividade, comunicação, brincadeira, empatia). Como resultado da soma de tudo isto, percebe-se que é a mãe quem promove as condições para que se desenvolvam as capacidades físicas e a confiança/segurança necessária para o bebé poder explorar o mundo e integrar as aprendizagens. Para passar da dependência à autonomia e à capacidade de criar relações saudáveis com os outros, deve haver respostas adequadas às solicitações do bebé.

O que se torna curioso realçar é que, afinal, antes do verbo, veio o amor. Nas teias desta nossa complexidade, tornámo-nos seres altamente sensíveis à comunicação não verbal, àquilo que não precisa ser dito para ser sentido. Usando essa capacidade, a mãe tem de “adivinhar” as necessidades do seu filho, sejam elas de ordem fisiológica ou psicológica. Com a mesma capacidade (não se subestime o pequeno ser), o bebé detecta muito facilmente qual o lugar que ocupa no mundo da mãe e, mais tarde, no mundo dos outros. Quando algo corre menos bem nesta fase, a estrutura e funcionamento psicológicos do indivíduo podem ficar, de alguma maneira, condicionados.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O retorno

Pedrinha (Da capacidade de amar uma criança)


"De amor pelas crianças só são capazes aqueles que amam a criança que neles habita. Nem todos puderam ser crianças, alguns foram apenas objectos utilitários de alguém. Que o teu filho não seja um utensilio de compensação da tua frustração ou um adorno da tua vaidade. Não o tornes num autómato, não faças dele um objecto utilitário. Deixa que a espontaneidade das tuas experiências infantis renasça das trevas dos teus preceitos e preconceitos de adulto, para falares com o teu bebé uma linguagem de gestos e de olhares que ele entenda e que o ajude a descobrir o mundo das pessoas e das coisas. Fala com a tua sabedoria, mais do que com o teu saber."
João dos Santos

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Transformações


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Luís de Camões

terça-feira, 15 de novembro de 2011

(Ainda) os sonhos de Jung


"O sonho recorrente é um fenómeno digno de apreciação. Há casos em que as pessoas sonham o mesmo sonho, desde a infância até à idade adulta. Este tipo de sonho é em geral uma tentativa de compensação para algum defeito particular que existe na atitude do sonhador em relação à vida; ou pode datar de um traumatismo que tenha deixado alguma marca. Pode também ser a antecipação de algum acontecimento importante que está para acontecer.

Sonhei durante muitos anos com um mesmo motivo, no qual eu “descobria” uma parte da minha casa que até então me era desconhecida. Algumas vezes, apareciam os aposentos onde os meus pais, há muito falecidos, viviam e onde o meu pai, para grande surpresa minha, montara um laboratório de estudo de anatomia comparada dos peixes e onde a minha mãe dirigia um hotel para hóspedes fantasmas. Habitualmente, esta ala desconhecida surgia como um edifício histórico, há muito esquecido, mas de que eu era proprietário. Continha interessantes mobílias antigas e, lá para o fim desta série de sonhos, descobri também uma velha biblioteca, com livros que não conhecia.

Por fim, no último sonho, abri um dos livros e encontrei nele uma série de gravuras simbólicas maravilhosas. Quando acordei, o meu coração pulsava de emoção. Algum tempo antes de ter este último sonho, havia encomendado a um vendedor de livros antigos uma colecção clássica de alquimistas medievais. Encontrara, numa obra, uma citação que me parecia relacionada com a antiga alquimia bizantina e queria verificar este facto. Algumas semanas depois de ter tido o sonho com o livro que me era desconhecido, chegou um pacote do livreiro. Dentro, havia um volume em pergaminho, datado do século dezasseis. Era ilustrado com fascinantes gravuras simbólicas, que logo me lembraram as que vira no meu sonho.

Como a redescoberta dos princípios da alquimia se tornou parte importante do meu trabalho pioneiro na psicologia, o motivo do meu sonho recorrente é de fácil compreensão. A casa, certamente, era o símbolo da minha personalidade e do seu campo consciente de interesses; e a ala desconhecida da residência representava a antecipação de um novo campo de interesse e pesquisa de que, na época, a minha consciência não se apercebera. Desde aquele momento, há trinta anos, o sonho não se repetiu."


Carl Jung in O Homem e os seus símbolos

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Curiosidade

Elogio da Criatividade


A criatividade é a capacidade de criar algo novo e original. É a matéria-prima da evolução, permitindo a produção do inovador, do diferente. Ainda se educa pouco para a criatividade, já que educar não é encher uma ânfora, mas alimentar uma chama viva, como disse o pedagogo Pestalozzi. É facilitar a aprendizagem e o desenvolvimento, ensinando cada um a pensar pela sua própria cabeça ao invés de formatar indivíduos apenas para repetir o que foi pensado por outros. Precisamos de espíritos críticos, não de ovelhas seguindo pastores. Pensar, questionar, duvidar, pesquisar, são acções criativas. O provérbio diz há muitos anos que da discussão nasce a luz e é por isso que temos um aparelho pensante (e não um gravador/leitor). Como diz António Coimbra de Matos, queremos formar pensadores em vez de “acumuladores de pensamentos”.

A criatividade aplica-se em tudo: no trabalho, nas relações humanas, no conhecimento que adquirimos. É, enfim, uma forma de estar na vida e um atributo de personalidade. No trabalho produz-se obra (preferencialmente acrescentando sempre uma nota criativa ao que fazemos). Uma relação saudável é, também, criação. É criação na medida em que nos desenvolvemos mais em relação com o outro do que nos desenvolvemos sozinhos: na relação com outras pessoas cria-se um espaço de desenvolvimento, resultante da partilha entre mentes, da transmissão de conhecimentos/vivências e do confronto de ideias. Funcionamos, na relação, como promotores da criatividade do outro. E, aqui, o expoente máximo da criatividade da relação é a criação do bebé, um ser único que chega ao mundo.

A criatividade implica, porém, liberdade. Liberdade de ser, de estar, de pensar e de sentir, perante os outros e perante nós próprios. Não há espaço para a criatividade quando estamos dominados por algo castrante (seja uma família, um chefe ou um governante). Há um sem número de indivíduos sufocados na sua capacidade criativa, muitas vezes desde o nascimento, em famílias ou em outros sistemas (profissionais, culturais, políticos) que não permitem que se questione uma única ideia ou princípio adquirido.

Em psicoterapia, não só se fomenta a capacidade de pensar (soltando amarras internas ou externas) como se potencia a criação de algo novo, um novo estar, um diferente sentir. Pretende-se a expansão da mente e o desbloqueamento de potencialidades aprisionadas, pois o ser humano tem um aparelho pensante sem igual. Somos autores da nossa vida e usemos logo aí a criatividade, para conduzi-la com inspiração e para com ela produzir algo único.


Referência útil: Coimbra de Matos, A. (2011). Relação de Qualidade: penso em ti. Climepsi.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Pedrinha (Da subjectividade da "culpa")


O sentir-se alguém "culpado" e "pecador", não prova que na realidade o seja, como sentir-se alguém bem não prova que na realidade o esteja.

Friedrich Nietzsche, in 'Genealogia da Moral'

sábado, 5 de novembro de 2011

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Pedrinha (Da irritação)

Tudo o que nos irrita nos outros pode levar-nos a um entendimento de nós mesmos.

Carl Jung

Espelho, espelho meu


Sabemos que o primeiro espelho em que o ser humano se vê reflectido são os olhos dos seus pais ou cuidadores, no geral, os olhos da sua mãe, em particular. Aí, nesse encontro de amor incondicional, se constrói a base mais sólida e fundamental do desenvolvimento de um sentimento suficiente de si mesmo. Na ausência desse estado de deslumbramento precoce, quando há desencontros nesse olhar (tantos desencontros de tantas e variadas espécies), sem um "espelho" que devolva ao bebé quão belo, especial e único ele é neste mundo, não há espelho que um dia mais tarde lhe valha. Excepto, com sorte, um objecto de amor adulto ("espelho" secundário) que possa por fim devolver esse reflexo, nunca antes conhecido, de amor, de empatia, de encanto e entusiasmo.
Nas palavras de António Coimbra de Matos, o Homem é um animal narcísico, que se mira no espelho. Se foi objecto do olhar apaixonado do outro, objecto do seu amor e reconhecimento, tal e qual como é, organiza um narcisismo saudável, sabe quem é e o que vale e tem amor a si próprio. Deste modo, amado, aprende a amar-se e amar os outros. Se não viveu esse encanto e não teve a sorte de ser suficientemente amado por outro alguém, restam três saídas: o sentimento crónico de inferioridade, a compensação narcísica e a vaidade, ou o ataque ao narcisismo dos outros.
Assim, ou "assume" para si mesmo que não tem valor, lesado na sua auto-imagem (e auto-estima) ou, quando o sentimento de inferioridade é demasiado doloroso e insuportável, enfrenta esta falha narcísica básica com mecanismos de defesa e compensação (escondendo o que sente não só dos outros como de si mesmo). Evidencia-se, exibe-se, transborda vaidade, arrogância e megalomania. É uma prótese que engana os mais desatentos mas que não resolve a insuficiência crónica dentro de si. E por isso, invoca o olhar do outro, não só através de chamadas de atenção e da valorização sistemática de si próprio mas passando também muitas vezes ao ataque ao outro, de forma sarcástica ou perversa, desvalorizando e desdenhando o alheio. Desenvolveu-se um narcisimo patológico. E, seco de afectos, nega perante si mesmo a necessidade desse amor. Fá-lo (aprendeu a fazê-lo), tantas vezes, por uma questão de sobrevivência.
O mito de Narciso conta-nos a história de um jovem que, após uma paixão por uma ninfa que o ecoava a ele mesmo, tem como triste destino "apaixonar-se" pelo reflexo da sua própria imagem numa fonte, onde fica, durante dias e dias, a admirar-se (tentando amar-se, talvez), definhando sem água nem alimento, e aí morrendo, por fim, só. O "narcísico" está condenado a estar só (afectivamente só) pois não poderá amar ninguém enquanto não souber amar-se a si mesmo. Porque o amor é dádiva e é muito difícil dar quando nunca se chegou a receber. Sem nunca ter sido olhado, ávido de reconhecimento, não consegue ver ou reconhecer mais ninguém. Precisa, imensamente, de amor.