quinta-feira, 26 de março de 2015

Rêverie


Nem tudo é pensamento. Nem tudo é imediatamente analisável e prontamente dotado de um significado e de um sentido. Há coisas que acontecem aquém (ou além?) do pensamento. Sonhamos e pensamos o mundo também com nossas emoções, na fina malha que liga as representações simbólicas. São emoções que, grávidas de significado, procuram trazê-lo à luz para que possam ter um sentido. À arte de sonhar essas emoções com o outro, podemos chamar rêverie. Um termo cunhado por Bion, em 1971. É o que se espera que as mães façam com os seus bebés, muito antes do verbo; é também o que se espera que os psicanalistas possam fazer com os seus analisandos é o que acontece numa relação a dois onde se pode sonhar acordado em conjunto. É a capacidade de estar em ressonância com aquilo que o outro projecta dentro de nós. Para isso é preciso poder viajar e perder-se, livre curso, sem medo do que não se entende. Perder-se entre devaneios, fantasias, sensações corporais, percepções fugazes, imagens, dormências, melodias e tudo o que mais atravesse a nossa mente, ainda que temporariamente sem um sentido. A rêverie é uma bússola, em que o norte é dado pela intuição. É tão importante poder flutuar com o outro, ainda que aparentemente à deriva, enquanto esperamos que, naturalmente, esse sonho a dois ganhe um sentido. Sim, nem tudo é pensamento. Debussy também acreditava que música era o espaço entre as notas.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Certezas Absolutas


Dominados pelo egocentrismo, característica daquele que está centrado em si e no seu ponto de vista, e pela omnipotência, crença de que se pode tudo, na infância e ainda na adolescência temos muitas certezas. Quantos pais já tentaram falar com os filhos recebendo em troca um “Eu é que sei!”? Essas certezas são, nessa altura, protectoras: fonte de segurança e de estabilidade necessárias ao crescimento tranquilo, dada a ainda frágil estrutura emocional de uma criança. Pressupõe-se, no entanto, que uma das tarefas da adolescência é precisamente começar a pôr em causa muitas dessas certezas, o que explica parte da instabilidade emocional vivida nesta fase. Tudo o que era certo e seguro, começa a ser questionado, se bem que, para que isso aconteça, é necessário haver uma estrutura interna minimamente sólida, capaz de aguentar o embate com a realidade cada vez mais óbvia, e que não descompense ao questionar o mundo (externo e interno). Chegando à idade adulta, devemos então ser capazes de assumir que pouco ou nada sabemos que seja absolutamente certo. Temos as nossas crenças, mas crer é diferente de saber. Acreditar nas coisas e em nós é importante, mas a crença deve permitir que haja espaço para que seja questionada ou revista. Assim, a ordem natural do crescimento emocional e do desenvolvimento psíquico é que possamos ir flexibilizando o nosso pensamento de forma a ponderar as nossas certezas e estar disponíveis para aprender com os outros.
No entanto, nem sempre as coisas acontecem assim. Por vezes, os adultos têm tantas ou mais certezas absolutas do que as crianças. Acham-se frequentemente os donos da verdade. E demonstram uma certa tendência tirânica para achar que a sua verdade é a verdade universal. Seja em valores pessoais, políticos ou religiosos, é fácil encontrar pessoas cuja posição perante a vida e os outros não permite qualquer discussão. A certeza é a base do fundamentalismo. Em nome das certezas absolutas foram cometidos alguns dos crimes mais sangrentos da nossa história: elas são o fundamento de todo fanatismo. A certeza de que se está na posse da verdade absoluta revela um modo de pensar rígido e pouco reflexivo, pois se já sabemos a verdade, não precisamos reflectir mais sobre o assunto. Problema resolvido.
Então, ao contrário do que tantas vezes parece, a certeza é irmã da insegurança, ou seja, quanto mais inseguros somos, maior a necessidade de estarmos certos. Seja a respeito de que assunto for. É a incapacidade de tolerar as dúvidas que nos conduz aos dogmas. Claro que a existência parecerá muito mais segura se estivermos convictos de saber as respostas a todas as perguntas, mas isso não corresponde à realidade, muito menos pertence à esfera do pensamento maduro. Sócrates disse-nos, com toda a sabedoria: “só sei que nada sei”. Reduzamo-nos à nossa humilde insignificância e aceitemos que a única forma de atingir o conhecimento é manter a mente aberta e um espírito interrogativo.

quarta-feira, 18 de março de 2015

Handling


É pelo toque do outro que conhecemos o nosso corpo. Pela ponta dos seus dedos. É nos contornos do corpo do outro que conhecemos os nossos contornos. Dentro do seu abraço. Tudo assim começa e depois assim continua porque o conhecimento não se basta a si mesmo e precisa de ser reforçado em novos e outros re-conhecimentos, em outros toques e outros abraços, que nos marquem a pele e assim nos recordem que somos um todo e que estamos aqui. Sentimo-nos na relação com o outro e mais precisamente na relação com o seu sentir. Se o outro não nos sentir, não conta. Sem isso, na falta desse ‘handling’ (como lhe chama Winnicott), sobra-nos um corpo desconhecido, ou mesmo traumatizado (se, para além ou no lugar da privação, o nosso corpo sofrer outros embates). Não é um estranho que habita em nós mas somos, sim, nós, que habitamos um estranho. O corpo torna-se matéria, desligado da mente e dos afectos; torna-se um meio de transporte, desintegrado, desinvestido e descontrolado; clivado e posto fora do lugar onde pertence — não é mais nosso. Torna-se fonte de mal-estar, de dores várias e que nos são alheias, que não entendemos, pois ele já não mais nos diz respeito. Não pertence a ninguém. Não é nosso e também já não pode ser oferecido ao outro. O toque pode até começar a queimar. E ele, corpo, que nasceu organismo vivo e vibrante, ponte entre nós e o universo, é agora só um pedaço de carne onde habita uma alma ou onde, se calhar, já não habita coisa nenhuma. 

terça-feira, 3 de março de 2015

Elastic Heart


O coração é elástico, músculo que contrai e expande, para nossa sorte. Foi feito assim para não se partir em mil bocados com as lutas que se travam lá dentro. No ringue defrontam-se as partes de nós que não se entendem. Varia a força do embate, do clássico braço de ferro ao combate sujo e ensanguentado. Quanto ao resultado, há partes que ganham, há partes que perdem, há empates técnicos, conforme os dias, as horas, os meses e as estações do ano. Conforme a luz, a lua, os humores e os amores. Conforme sabe-se-lá-o-quê porque isso afinal nem interessa e não há outro remédio senão aguentar esses confrontos na arena do coração. Fazem parte. Onde não há conflito, não há vida, nada se questiona, nada se transforma, nada se acrescenta, nada se avança.