Memory (The Heart) - Frida Kahlo |
Há muitos anos atrás
visitei uma exposição interactiva chamada “Bom dia medo!”. À entrada, todos os
meninos escolhiam e sinalizavam, de entre vários, qual o seu maior medo. Entre
as opções encontravam-se o medo do escuro, o medo dos animais ou o medo dos
desconhecidos mas recordo-me de constatar que quase todas as
crianças escolhiam o medo da dor.
Numa
fase precoce do entendimento, tememos mais a dor física (as quedas e
trambolhões, as feridas, as vacinas) mas mais tarde, percebemos com facilidade
que há outras dores mais terríveis: as dores da alma. Hoje sabemos que
toda a dor se processa no cérebro, seja lá de que origem for. Mas é noutro
lado que se sente: ninguém quer sofrer cá dentro, no coração.
O
fenómeno da dor (ou das várias formas de se sentir dor) é algo muito complexo:
onde uns a sentem, outros não sentem nada, e o que representa dor para uns é
diferente do que representa dor para outros. Coisas que antes doíam, deixam de
doer. Coisas que nunca doeram, passam a doer. A dor é uma percepção plástica e
móvel, que se altera e migra no espaço e no tempo. A dor é também um sintoma: a
dor fala sobre muitas coisas. Uma dor de cabeça pode falar de ansiedade, uma
dor de barriga pode falar-nos de medo, uma dor nas pernas pode falar-nos de
dificuldades no processo de autonomia, entre outras situações. Em boa verdade,
sentimos medo da dor física mas aquilo que nos marca é a correspondente dor
mental.
Como
se não bastasse, não só tememos a dor-em-si como tememos a hipótese de a
sentir. Essa mesma antecipação da dor, já causa, em certa medida, sofrimento.
Chamamos-lhe angústia, mas a angústia também “dói”. Corrói por dentro,
torce-nos as entranhas, tira-nos o sono, a fome, a paz. Ou seja, há o medo da
dor mas há também a dor do medo. O medo nasce cedo porque cedo se sabe que
muita coisa, no nosso existir, dói. As experiências da dor são inevitáveis.
Muitas surpreendem-nos logo dentro da barriga da mãe: desconfortos vários, de
maior ou menor intensidade, que a cada sensação rapidamente nos condicionam a
não experienciar aquilo mais nenhuma vez. Mas ela regressa sempre, de todas as
maneiras. Em desconfortos, outros. Em desencontros, muitos, entre o nosso
sentir e o sentir dos outros, pelas perdas sucessivas que vamos acumulando,
pelas doenças do corpo e pelos males da alma, há demasiada coisa que dói e é
disso que fugimos.
Talvez
a melhor forma de lidar com a dor seja, em primeiro lugar, parar de fugir:
aceitá-la. É preciso aceitar a dor. É preciso aceitar que ela faz parte da
vida: da nossa e da dos outros. É na aceitação da dor que o caminho se torna
mais fácil. A vida vai doer, não nos iludamos — coragem. Que isso não nos impeça, jamais, de viver. A vida vai doer mas há
outra coisa que sabemos: à partida, nada dói para sempre. Tudo passa. E é nessa
certeza que encontramos o conforto necessário para não morrermos de medo todos
os dias. Venha o que vier, venha a pior tempestade, haverá sempre de seguida,
uma bonança. É desse agridoce que surgem as melhores histórias, os melhores contos, os melhores poemas.
Angústia! Algo inerente a vida .
ResponderEliminarGostei
Texto excelente. Boa abordagem ao tema
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