A
vida vai em crescendo. Primeiro é-se nada. Depois é-se um. Depois é-se dois.
Depois é-se três.
Primeiro
é-se nada e o mundo gira sem nós. Pessoas, terras e animais existem sem sequer
imaginar que um dia chegaremos. Quando cá chegamos, já milhões de eventos se
passaram, milhões de vidas se viveram, milhões de histórias se contaram.
Guerras, catástrofes, amores, descobertas; o mundo é imenso sem nós. Porém, cá estamos.
Fazemos parte. É-se um em muitos.
É-se
um e para ser-se um, é preciso saber estar só (mesmo na presença do outro).
Saber estar só é saber ser ímpar: sentir-se uno, sentir unidade e coesão
interna. A construção da individualidade é condição primária para o resto da
nossa vida. Vai-se fazendo aos poucos, desde o nascimento, num processo cheio
de avanços e retrocessos: quem somos, de onde vimos, para onde vamos, o que nos
move, o que nos atormenta? Apesar de ser um caminho nosso, neste processo é
fundamental ser-se apoiado: pelas relações mais próximas, pelos nossos
cuidadores, pelo meio envolvente. Com demasiadas falhas em nosso redor, o
caminho passará mais pela busca da sobrevivência do que pela busca de nós mesmos
— há
prioridades. Mas se as coisas correm bem, se temos o que precisamos, podemos
dedicar-nos com relativa tranquilidade à descoberta do nosso mundo interno,
através da relação com os outros e com o mundo, através da brincadeira, através
das aprendizagens e das experiências.
Então,
quando se sabe ser ímpar, pode então ser-se par. É-se dois. O encontro com o
outro é difícil mas será tanto mais fácil quanto mais soubermos quem somos.
Ser-se dois implica saber respeitar a liberdade de cada um. Ser-se dois implica
não nos perdermos de nós próprios ou fundirmo-nos com o outro. Ser-se dois é
ser-se um mais um e nunca ser-se um só. O que liga o par é outra coisa, é a
comunhão dos afectos e dos projectos, são os sonhos.
Quando
o par já não chega e se transborda, é-se três. Ser-se três é uma circunstância
que nasce desses sonhos partilhados numa relação que está viva e que, portanto,
se expande. Ser-se três é ainda mais desafiante. Ser-se três é saber alternar
entre todas estas posições: há momentos para ser-se um, há momentos para ser-se
dois e outros em que se é três. E daqui em diante pode ser-se quatro, cinco,
seis, sendo que entendido o processo as questões serão sempre semelhantes a
partir daqui.
Depois,
se acrescentarmos às contas as nossas restantes relações, podemos mesmo dizer
que somos muitos. E se um dia nos encontrarmos pensando que no fim voltaremos a
ser nada, lembremo-nos antes que depois de tanta construção e ligação seremos
sempre dois, três, quatro, tantos quantos aqueles a quem tivermos deixado neste
mundo um pouco de nós.
Sem comentários:
Enviar um comentário