A fronteira que se estabelece entre o público e o privado sempre
exigiu reflexão às Ciências Sociais. Tais conceitos são instáveis, uma vez que o
público e o privado se misturam constantemente em diversas situações. Podemos
dizer que grande parte daquilo que é o nosso quotidiano dança nessa fronteira
entre o que se pretende resguardado e a resguardar — o que se exige que seja público, o que se aceita
tornar público e ainda o que se pretende manter privado. Hoje, a reflexão
permanece, pontuada agora por questões que surgem com o desenvolvimento
tecnológico.
Face às ameaças do
chamado “terrorismo” do séc. XXI, os sistemas de vigilância estão cada vez
mais apertados (logo, intrusivos) e o direito à privacidade está em debate
desde então. Paradoxalmente, há um certo “desperdício” de privacidade que nasce
com a chegada das redes sociais: há quem partilhe com centenas de pessoas
(vulgo, “amigos”) todas as fotografias de férias, todas as conquistas dos
filhos documentadas em vídeo ou tudo o que almoçaram e jantaram ao longo do
mês. É verdade que se essa possibilidade existe, é um direito usá-la. É também
verdade que sempre houve quem se encontrasse mais exposto: as chamadas figuras
públicas, (precisamente porque a sua vida é mais pública que privada). O que
nos leva a outra reflexão: o que hoje acontece é que, de certa maneira, podemos
todos ser figuras públicas. Aliás, ser um cidadão mais anónimo parece até significar
que se é, de certa forma, menos importante. Quando se pergunta às crianças o
que querem ser quando forem grandes ouve-se demasiadas vezes: “famoso”. Ou
seja, a fama deixa de ser uma consequência natural de um trabalho ou conquista
para ser um fim em si. Ser famoso é ser visto, ser falado, logo, ser “alguém”.
O
problema é que isto implica um mundo em que só a visibilidade e a projeção no
mundo exterior é que parecem validar o que somos (ou quem somos). Quem não
mostra é como quem não existe. Mas quando tudo se torna visível, o que sobra
para sonhar? Quando tudo se torna vendável o que sobra de “nosso”? Ao mostrar-se
tudo a todos nada mais resta de "íntimo". A intimidade,
o mistério que só se revela a quem se quer, permanecerá sempre como um nicho
mágico a proteger. Certo é que, nas suas origens burguesas, ela consistia
nas convenções de decoro - honra, pudor, vergonha - que protegiam o corpo, o
sexo e as emoções do olhar alheio. Mas a intimidade é muito mais que isso: é o
que de mais profundo há em cada um de nós. É o que nos distingue dos restantes
e o que partilhamos com quem nos é especial. Mais, é exatamente por meio dos conteúdos internos e íntimos que se
torna possível discernir o mundo interno do mundo externo. A intimidade
contribui para a delimitação do espaço psíquico, para aquilo que nos separa dos outros. Sem a
preservação do privado — do íntimo, da profundidade — seremos todos iguais. E
isso só pode ser muito triste.
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