“ (…) Assim como na Física há uma
lei segundo a qual dois corpos não ocupam o mesmo espaço ao mesmo tempo, deve
haver outra lei, no universo subjetivo, que impede duas individualidades de
viverem a mesmíssima vida. Tenho a impressão que a insistência em contrariar
esse princípio está por trás de muitos e graves desencontros por aí.
Desde a adolescência, e provavelmente ainda antes, somos alimentados com a
ilusão de que um dia encontraremos alguém com quem iremos nos fundir. A tal
pessoa, aquele, a mulher da nossa vida, o príncipe encantado – todos esses são
agentes do destino que teriam a função, na nossa história pessoal, de rasgar a
couraça da individualidade, penetrar nosso casulo e nos salvar, de forma
permanente, da horrível solidão de ser um indivíduo. A partir desse momento
redentor, a nossa dor fundamental seria superada e seríamos, então, felizes
para sempre. No outro.
Algumas vezes, mesmo na vida real, chegamos perto desse estado idílico de
aniquilação. É quando estamos apaixonados. Nesse momento mágico – e, segundo o
Freud, patológico - nossos sentimentos em relação ao outro são tão violentos
que parecem romper o isolamento essencial. Em tal estado de comoção de ser
parte do outro. Se ele se afasta, sentimos dor. Se ele está perto, sentimos
prazer. Parece ser impossível viver sem ele, porque se tornou parte de nós.
Em “O Monte dos Vendavais”, a jovem apaixonada diz ao rapaz “Eu te amo”, e
ele responde “Eu sou você”. Não existe na literatura ou no cinema uma
declaração de amor mais radical do que essa.
Há outro momento em que também nos sentimos perto desse sentimento. É no
sexo. Em meio ao prazer, aquilo que nós somos desaparece temporariamente em
direção ao outro. Mergulhamos numa torrente tão intensa que, por alguns
minutos, não somos mais que o conjunto daquelas sensações. Há uma pequena morte
aí, um breve suicídio prazeroso no qual mergulhamos felizes, levado pelo corpo
e pela personalidade do outro.
Mas esses momentos são terrivelmente efêmeros, não? Mesmo a mais intensa
paixão é passageira. Cedo ou tarde, ainda que contra a nossa vontade, somos
arrastados de volta à normalidade de sermos apenas um. Logo chega o momento em
que é preciso negociar com a personalidade do outro, com a percepção do outro,
com o desejo do outro. Com isso se desfaz a ilusão de pertencer. Deparamos, de
novo, com a nossa assustadora e iniludível solidão interior. Sabemos disso,
vivemos isso desde crianças, mas uma parte de nós continua sonhando com uma
paixão tão arrebatadora, tão dominante, que nos livre para sempre de nós
mesmos. Crescer, eu acho, é deixar também essa fantasia para trás.
Alguns recusam isso terminantemente. Insistem em esperar pelo sonho ou –
muito pior - tentam transformar a vida real a dois num exercício de destruição
das personalidades. Fazemos tudo juntos, pensamos o mesmo, gostamos das mesmas
coisas, compartilhamos as mesmas experiências, dizem. Na boa ou na marra, vão
arrastando o outro a uma vivência que é uma réplica da sua. Até o ponto em que,
de tão parecidos, não tenham mais nada a contar um ao outro. Então se separam.
Estou exagerando? Claro que sim. Mas, mesmo entre pessoas que não vivem na
caricatura, o impulso comum de controlar o outro faz parte do movimento de
negação da individualidade. Ele se recusa a reconhecer o outro com as suas
necessidades próprias, sua existência fora de nós. O desejo de aprisionar é o
impulso de se proteger do outro, que, insistindo em ter vontade própria, pode
fazer algo que nos machuque.
Enfim, acho que é disso que os sonhos falam. Da nossa vontade de ser forte
como indivíduos e do nosso medo oceânico de nos desligarmos dos outros. Da
contradição entre a vontade de crescer e o impulso de permanecer um bebê
chorão, ligado ao outro por um cordão umbilical. Os sonhos contam que o amor,
lindo que é, essencial como possa ser, não nos salva de sermos nós mesmos.
Mesmo quem respira suavemente ao nosso lado, adormecida, tem sonhos separados
dos nossos. É uma pessoa estranha que amamos, mas sobre a qual nunca saberemos
o suficiente. É preciso respeitar esse mistério.”
Ivan Martins
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