"Ninguém podia adivinhar que
se tratava de um fantasma. Ela era demasiado bonita para isso, demasiado doce, resplandecente.
Uma aparição não tem calor, é um lençol frio, um tecido, uma sombra
inquietante. Ela, ela encantava-nos. Devíamos ter desconfiado. Que poder tinha
ela para nos fascinar tanto, para nos impressionar e nos levar à nossa maior
felicidade? Deixamo-nos cair na armadilha a ponto de não compreendermos que já estava
morta havia muito tempo.
Na verdade, Marylin Monroe
não estava completamente morta, estava apenas um pouco, às vezes um pouco mais.
O seu charme, ao fazer nascer em nós um sentimento delicioso, impedia-nos de
compreender que não é necessário estar morto para não viver. Começara a não estar
viva desde que nascera. A sua mãe, desumanamente infeliz, expulsa da humanidade
por ter trazido ao mundo uma filha ilegítima, estava estupidificada de
infelicidade. Um bebé não se pode desenvolver de outra forma que não seja no
meio das leis inventadas pelos homens, e a pequena Norma Jean Baker, mesmo
antes de nascer, encontrava-se fora da lei. A melancolia que sentia preenchia
de tal forma o seu mundo que a mãe não teve força para lhe oferecer uns braços
tranquilizadores. Foi necessário colocar a futura Marylin em orfanatos gelados
e confiá-la a uma série de famílias de acolhimento entre as quais era difícil
aprender a amar.
As crianças sem família não têm
tanto valor como as outras. O facto de serem exploradas sexual ou socialmente não
pode ser considerado um crime grave, uma vez que estes pequenos seres
abandonados não são totalmente crianças verdadeiras. Algumas pessoas pensam
assim. Para sobreviver apesar das agressões, a pequena Marylin teve de começar
a “imaginar”, a alimentar-se da própria dor, antes de se afundar na melancolia
e na loucura da sua mãe. Então, declarou que Clark Gable era o seu verdadeiro pai,
e que pertencia a uma família real. Não tinha outra alternativa! Desta forma construía
uma identidade vaga, já que, sem sonhos loucos, teria sido forçada a viver num
mundo de lama. Quando a realidade morre, o delírio dá origem a uma maré de
felicidade. Assim, casou-se com um campeão de basebol para quem cozinhava todas
as noites cenouras e ervilhas , cujas cores tanto lhe agradavam.
Em Manhattan, onde tirou
cursos de teatro, passou a ser a aluna preferida de Lee Strasberg, que era
fascinado pelo seu estranho encanto. Já tinha estado morta muitas vezes. Era
necessário estimulá-la bastante para que não se deixasse levar para o mundo dos
mortos. Ela hibernava, não saia da cama e já não se lavava. Quando acordava com
um beijo, de Arthur Miller, por quem se tornou judia, de John Kennedy ou de
Yves Montand, reanimava-se, deslumbrante e afectuosa, e nenhum deles se
apercebia de que tinha sido encantado por um fantasma. No entanto, ela dizia-o
quando cantava I’m Through With Love. Estando
já afastada do mundo dos mortais, refulgente em plena glória, sabia que só lhe
restavam três anos de vida antes de oferecer a si própria um último presente: a
morte.
Marylin nunca esteve
completamente viva, mas nós não o podíamos saber, pois o seu fantasma era tão
maravilhoso que nos enfeitiçava."
Boris
Cyrulnik in O Murmúrio dos Fantasmas
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