“O diálogo que me foi
construindo como profissional, assente numa dupla filiação em Psicanálise e
Educação, devo-o certamente a João dos Santos e aos momentos em que nas salas
da Universidade, ainda na Pinheiro Chagas, nos encontrávamos com ele, uns com
os outros e com a Psicologia. Nesses encontros João dos Santos fazia entrar sem
cerimónia o mundo grande, a complexidade e o enigma, a cultura e a educação, a
escola e a infância, a pedagogia e a terapia, a psicanálise e a importância de
nos questionarmos a nós próprios.
É uma
curiosa e feliz coincidência que o ano de nascimento de João dos Santos (1913)
seja o ano em que Sigmund Freud publicava o seu trabalho “O interesse
da Psicanálise”, apontando nesse magnífico texto o denominador comum entre
a Psicanálise e a Educação: o facto de ambas reconhecerem a importância
decisiva da infância na evolução do homem. Escreve então : ” A
Psicanálise viu-se obrigada a fazer derivar a vida psíquica do adulto da vida
psíquica da criança e a tomar a sério o adágio popular de que a criança é o pai
do homem. Estudou a continuidade da psique infantil no adulto, identificou as
transformações e as mudanças que se cumprem nesse caminho e encontrou a confirmação
do que já havíamos frequentemente pressentido: a extraordinária importância,
para todo o curso ulterior da vida do homem, das suas experiências infantis e
em particular das que ocorrem nos primeiros anos da infância (…) A contribuição
principal da Psicanálise para a educação é o reconhecimento da importância da
Infância”.
É também
neste texto de 1913 que podemos ler: «O maior interesse da Psicanálise
para a Ciência da Educação funda-se sobre um enunciado que se tornou evidente,
o de que não pode ser educador senão aquele que pode sentir do interior a vida
psíquica infantil e quando nós, adultos, não compreendemos as crianças é porque
deixámos de compreender a nossa própria infância».
Como que
respondendo a este desafio, João dos Santos, psicanalista e pedagogo, pioneiro
do diálogo entre a Psicanálise e a Educação em Portugal, torna o enunciado
freudiano o fundamento da sua obra convidando cada adulto e nele cada educador
a encontrar-se com a criança que guarda dentro de si para que, sentindo
do interior a vida psíquica infantil, possa encontrar-se com a
criança e educar… Educar, é oferecer-se como modelo (JS).
Educação
designa simultaneamente um processo e o resultado desse processo. O processo
consiste num trabalho de formação pelo qual a criança é chamada a desenvolver
as faculdades que a definem como ser humano e o produto deste trabalho de
formação, a bem dizer interminável, é a realização no sujeito das
características constituivas dessa humanidade. Sabemos que o processo educativo
implica um campo de influências múltiplas e recíprocas entre adultos – pais,
professores, educadores – crianças e adolescentes e que o caminho da educação é
pontuado por encontros que vão permitindo a construção do ser e o seu
desenvolvimento. No coração do desenvolvimento está a relação. A complexidade
desta relação é tal que é difícil de dizer o que nela age e o que ela
transforma, mas que é da ordem do encontro, parece indubitável. E se é bem
verdade que todo o encontro humano é um enigma, não temos hoje qualquer dúvida
de que os agentes de transformação são as pessoas e não as estruturas. No
coração do desenvolvimento está a relação e é também a relação que está
no coração do encontro educativo: “Só se educa quando uma relação
humana se estabelece, se desenvolve e se confirma na intimidade de cada uma da
crianças e adultos em presença” (JS).
Marcel
Postic no seu livro A relação pedagógica esclarece: “A
relação pedagógica torna-se educativa quando em vez de se reduzir à transmissão
do saber, compromete as pessoas em presença num encontro onde cada um descobre
o outro e se vê a si mesmo e onde começa uma aventura humana pela qual o adulto
vai nascer na criança. João dos Santos não se cansa de o lembrar: “Educar
é basicamente estabelecer uma relação, a relação implica que o objeto de amor
seja investido. Aquele que faz o primeiro movimento deve ter disponibilidade
para receber as descargas afetivas no esboço de comunicação que se estabelece.
A comunicação define-se como energia que passa num certo sentido e no sentido
inverso (…) “A pedagogia e a didática funcionam melhor quando são instrumentos
de comunicação reciproca”(…). No plano pré-educativo da relação básica, como no
plano da educação, a relação deve ser entendida como uma disponibilidade
afetiva para dar e receber amor terno e amor agressivo” (JS).
Parece-me
que a formação de educadores e professores dever dar uma prioridade absoluta à
relação pedagógica, pois que o trabalho educativo é essencialmente um trabalho
de ligação. É um trabalho que se inicia sempre por uma ligação humana, a partir
da qual se torna possível levar o aluno a estabelecer ligações com os objectos
mais distantes que constituem a cultura e os saberes. Toda a relação é sustentada
e animada por processos de identificação recíproca ou mútua e o encontro educativo
não foge a esta regra: ao desejo de apropriação por parte do educando tem que
corresponder um desejo de dádiva do educador. O educador/professor oferece-se
como objeto desejável de aprendizagem e o educando como objeto desejável de
educar. “O encontro não é só obra do acaso, é também obra da disponibilidade
recíproca daqueles que se encontram. O encontro depende da convicção do que de
perene existe nos nossos semelhantes” (JS).
Na relação com os outros, mesmo que
mediada pela transmissão de um conhecimento, como é o caso da escola, não
estamos nunca desimplicados, estamos com a nossa história, feita a nossa
pessoa. Cada um de nós sabe-o, sentiu-o, experimentou-o. Basta que evoquemos o
nosso passado escolar para que surja toda a gama de sentimentos que tecem a
relação com a aprendizagem: angústias e alegrias, entusiasmos e deceções,
proximidade e afastamento, adesões e ruturas. A escola está em cada momento e
em cada sala cheia de fenómenos afetivos, de narrativas de vida silenciosas,
que uns e outros contam, escutam e às quais respondem. Cada momento de
ensino/aprendizagem é a história de um encontro, mais ou menos conseguido,
entre um professor, um aluno e um saber. Cada actor em cena quando convoca o
saber, convoca igualmente em cada um dos seus actos toda a sua pessoa, uma
história de vida e um projecto de vida, melhor ou pior sucedidos, uma memória implícita,
activa, representações, sentimentos, valores, uma ideia de humano, de criança,
de adulto, uma ideia de crescimento, uma ideia de aprendizagem, expectativas,
dúvidas, paixões, violências, desilusões, sucessos e frustrações, desejos de
reconhecimento, pulsões construtivas mas igualmente pulsões destrutivas de
domínio e de controlo. Uma tal implicação é em si mesma constitutiva do
encontro e, sendo inevitável, longe de ser inoportuna é mesmo útil e desejável.
Não encontramos os outros e os outros não se encontrarão connosco senão através
da nossa presença e autenticidade.
“Não
existe, nem creio que alguma vez exista, uma forma exata de educar, pois que a
sociedade está constantemente a evoluir e a sua própria evolução implica a
negação pela juventude da validade dos princípios educativos imposta pelos
antecessores. Não existem educadores perfeitos, e quando há pretensos
educadores perfeitos, os seus produtos são casos patológicos” pensava
João dos Santos, e tudo quanto aconselhava, no estado atual dos nossos
conhecimentos, precisava, era que “cada um eduque com verdade e
espontaneamente e que os educadores sejam personagens reais e não autómatos
eruditos e sofisticados (…) Se a educação pode ser encarada como um fenómeno
cultural que orienta o diálogo com o educando e os outros educadores, a ação
educativa deve sempre basear-se na relação espontânea, afetiva e instintiva
pois que quem educa são as personagens verdadeiras e não as figuras ideais. Não
se educa com teorias mas com princípios e preconceitos adquiridos na
experiência e no convívio familiar e comunitário, não sendo a educação uma
matéria que se ensine, mas fundamentalmente uma atitude que reflete o confronto
entre as vivências do educando que fomos com o educador que pretendemos ser” (JS).
Que
educadores pretendemos ser?
Escolhermos
ocupar-nos de crianças ou jovens é reencontrar a nossa própria infância e
juventude. Mesmo que não guardemos recordações conscientes, não deixamos
de ser menos habitados por essas idades pois foi lá que nascemos para para a
relação, para a percepção de nós e dos outros. Cada educador revive e transpõe
afetos e sentimentos com origem em lugares do seu passado (mas nem por isso
menos presentes e atuantes no seu mundo interno) para os lugares e relações do
presente e também para a sua relação com o conhecimento e com cada um dos seus
educandos, dos seus alunos. Este é um dos maiores contributos da Psicanálise
para as Ciências da Educação e aquele que João dos Santos, como psicanalista do
encontro educativo, permanentemente nos lembra. Em cada uma das suas histórias
– contador de histórias como gostava de se apelidar – fala-nos deste Outro em
nós, desta nossa parte de enigma, irracional e secreta “Toda a pessoa
guarda um segredo e o segredo do homem é a própria Infância” eda sua
influência nas relações que estabelecemos. Este Outro, dimensão Inconsciente na
terminologia psicanalítica, é o que nos move, o que permanentemente nos escapa
e o que teima em reaparecer em cada um dos nossos encontros educativos. É
importante conhecê-lo, dizendo de outro modo, é importante que nos conheçamos.
“A
motivação para os problemas da criança, escreve João dos Santos, reside na
própria infância de cada um, a experiência infantil acompanha-nos pela vida
fora, e assim, podemos admitir que, tal como a Obra tem uma estrutura de base e
toda a construção um alicerce, também a personalidade tem uma base ou alicerce,
que é a infância. Tal como o edifício depois de acabado, retocado e
experimentado não pode dispensar os alicerces, também a pessoa não pode
mentalmente anular a experiência e as vivências da sua criação. As pessoas
adultas equilibradas guardam saudavelmente certos factos infantis ou juvenis. O
adulto vê a infância e juventude do outro através do imago que ele se fez da
sua própria infância e juventude, para se rever nas suas aspirações
bem-sucedidas ou para reagir contra o fracasso das suas rebeldias. O educador
pensa em termos daquilo que deve ser mas, com frequência, aquilo que o educador
acha que deve ser corresponde à maneira como ele próprio se organizou, quando
criança ou jovem, de acordo ou em desacordo com aquilo que lhe impuseram” (JS).
Como
Ciência do Humano a Psicanálise procura dar voz a este Outro, escutando a
dinâmica do mundo interior, as experiências e personagens que o habitaram e
habitam, trazer compreensibilidade aos comportamentos e atitudes que não se
reduzem nunca apenas ao que dão a ver. Ciência das profundidades, não das
superfícies, a Psicanálise do Encontro Educativo propõe-nos uma
Investigação/ação que toma como objeto a dinâmica dos processos psíquicos que
influenciam a intersubjetividade e as vias através das quais um ser humano se
constrói, se desconstrói e se pode ainda reconstruir, reconhecendo em cada ser
humano um sujeito que ainda não é… paradigma tão caro a João
dos Santos: a educabilidade. Convida-nos a um diálogo entre observação e
auto-observação, à reflexividade e a questionarmos as nossas atitudes e atos
pedagógicos, de uma forma aberta e atenta ao educando. Um convite a que
trabalhando com a criança, o educador trabalhe igualmente sobre si próprio,
para que não fique aprisionado nas malhas da repetição “(…) Os mestres
são modelos, modelos de disponibilidade. Ser ou estar disponível é ter uma
vida interior que se organiza em termos de deixar espaço para a
sensibilidade e para a sabedoria dos outros” (JS).
A Psicanálise do encontro educativo
ensina-nos sobretudo que a afetividade é indissociável do desenvolvimento da
inteligência e que a palavra que o adulto dirige à criança traz com ela afetos
que ressoam longamente pela vida, pois que as palavras antes de significarem
alguma coisa significam alguma coisa para alguém.
Se como
diz Edgar Morin, em entrevista ao Jornal Le Monde, a missão
essencial da educação e do ensino é a de nos preparar para viver, então os
conhecimentos vitais, do Ensino Básico à Universidade, não serão essencialmente
os conhecimentos “sobre” o Ser Humano mas os de “como” ser Humano. Esse é
também o ensinamento e o desafio que João dos Santos parece lançar a este novo
século e ao educador em cada um de nós."
Santarém,
8 de Novembro 2013
Maria
Teresa Casanova Sá
* Comunicação na Conferência “XXI
Jornadas da Prática Profissional da Escola Superior de Educação de Santarém – O
Segredo do Homem é a própria Infância: pensar em Educação com João dos Santos”,
proferida pela Dra Maria Teresa Casanova Sá, 8 de Novembro de 2013
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