A
nossa cultura, de forte tradição judaico-cristã, apela ao amor ao próximo. Mas
se amar os outros é uma virtude, tantas vezes se insinuou que amar-se a si mesmo seria um “pecado”. Aliás, Calvino referia-se
ao amor-próprio como se fosse
uma “peste”. Fazia-se então, mais do que hoje, o elogio da capacidade de
sacrifício. Partia-se do ponto de vista que o amor pelo outro e o amor por nós
mesmos são dois tipos de amor que se excluem mutuamente. Hoje sabemos que o
amor pelo outro não pode sequer existir sem que, primeiro e/ou simultaneamente,
exista amor-próprio.
O
amor pelo outro implica o respeito pelo ser humano em geral, e eu sou tão ser
humano quanto todos os outros. Repare-se que mesmo a Bíblia não nos ensinou a
colocar o outro como prioridade, mas sim em igualdade, pois diz-nos “ama o
próximo como a ti mesmo”. O respeito pela nossa integridade e o amor pelo nosso
“eu” não podem ser dissociados do respeito e amor pelos outros seres. Assim, as
atitudes de amor (por nós e pelo outro) não são uma disjunção (ou uma ou outra)
mas, sim, uma conjunção (uma e outra).
Apesar
de todo este conhecimento teórico, é com facilidade que, no dia-a-dia, ainda se
apregoa como grande virtude de carácter o facto de se "pensar mais nos
outros do que em si mesmo". É uma tendência enraizada da dita cultura, que
conduz a uma incondicional admiração do chamado “altruísmo” (dedicação ao
outro) e da instituída confusão entre amor-próprio e egoísmo (dedicação a si
mesmo). Quanto ao altruísmo, entenda-se que um sujeito cujo sentido da vida
é viver para os outros, não pode viver em amor: a negligência de si mesmo,
resulta, mais cedo ou mais tarde, numa hostilidade escondida e/ou inconsciente
para com o mundo ― zanga, amargura, frustração e sensação de injustiça/défice ―
dados os sucessivos desrespeitos a que a pessoa se sujeita. O esvaziar-se de si
não pode ser considerado uma coisa boa. Da mesma forma, o encher-se de si e só
de si, aquilo a que chamamos egoísmo, não se pode confundir com amor-próprio.
Egoísta é aquele que apenas se interessa por si mesmo, que quer tudo para si e
que não retira qualquer prazer do acto de dar, pois apenas pretende receber. E
o segredo está no facto de que o sujeito egoísta, ao contrário do que possa
parecer, não se ama a si mesmo: está profundamente necessitado, como tal, pouco
tem a oferecer. Assim, egoísmo e amor-próprio, não só não são nada semelhantes,
como são profundamente distintos e mesmo contraditórios. Torna-se
então fácil distinguir aquele que se ama (pois também ama o outro mas sempre
com equilíbrio e com balizas) daquele que, precisamente por não se amar, não
pode nem consegue amar mais ninguém.
Queiramos
ou não, nós somos e devemos ser o nosso centro. E só em paz com isso, capazes
de nos amarmos, seremos capazes de amar o próximo. Mães mais felizes são
melhores mães. Filhos mais felizes são melhores filhos. Homens e mulheres mais
felizes são melhores amantes. Que cada um se respeite e se ame
para, de barriga cheia, possamos amar o outro e dedicar-lhe o melhor de nós,
sempre porque queremos e não porque devemos.
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