Reflectia eu, por determinada razão, sobre o drama destes
miúdos, encolhidos nos seus cantos, repetidamente violentados de várias
maneiras, gradualmente mais e mais fragilizados. Pensava eu numa opinião ouvida
há uns dias, uma análise acerca da autonomização destes miúdos, 'vítimas de
bullying', acerca de formarem a sua identidade com mais facilidade por se
encontrarem fora do 'rebanho'. Entendo a lógica mas não podemos ir por aí. É
violentíssimo, é terrorismo, é desamor. A autonomização pelo desamor não interessa
a ninguém. Então, pensava eu em tudo isto e nem a propósito:"Há pais que
ainda acham que o bullying faz parte de uma infância normal, mas o normal são
os conflitos, não a violência continuada e intencional”
Transformação é a palavra-chave. Na vida ou há desenvolvimento ou instala-se a decadência. O estacionamento é uma ilusão. Nas palavras de Cervantes, “A estrada é sempre melhor que a estalagem” (António Coimbra de Matos)
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sábado, 31 de outubro de 2015
terça-feira, 4 de novembro de 2014
Das turbulências
Há dias que são como mares revoltos. Nesses dias, as emoções
são fortes. Porque tal como a agitação marítima traz à superfície coisas que
habitualmente estão no fundo do mar, a turbulência emocional invoca o que está
no mais profundo de nós, misturando tudo à superfície. Se o mar está agitado, mais cedo ou mais
tarde, enquanto combatemos as ondas e as correntes, vêm ao de cima os medos
mais remotos, as feridas mais antigas e as memórias mais bem guardadas,
fazendo-nos sentir ainda mais desamparados face às intempéries. O pânico pode
tomar conta. Felizmente, temos também acesso aos nossos recursos e bóias de
salvação que fomos armazenando durante o caminho. Afectos positivos,
aprendizagens e competências de toda a espécie que mobilizamos para combater
tudo o que de mau nos atormenta no meio da tempestade. Na certeza, sempre, que
nenhuma tempestade dura para sempre e que a impermanência das coisas é, nestes
momentos, uma característica muito útil da condição humana. Depois da
tempestade vem a bonança. Isso sim, invariavelmente.
quarta-feira, 8 de outubro de 2014
Leveza
![]() |
Tamara de Lempicka - Beautiful Rafaela |
Ceely,
uma mulher volumosa de vinte e quatro anos com os olhos profundamente negros e
olheiras a combinar, estava inchada na proporção das tareias que tinha levado. Durante
os nossos primeiros encontros, ela esperava sentada na minha sala de espera e,
quando eu a ia buscar para a nossa sessão, ela sentava-se e agarrava-se com
força aos grossos braços de cerejeira da cadeira do consultório, acalmando-se
lentamente. (…) Numa voz que me fazia lembrar o delicado chilrear de um pequeno
e assustado pássaro ferido, Ceely espontaneamente referiu que estava “para lá
dos 150 quilos” e que era assim desde há anos. Rapidamente acrescentou que
tinha uma mãe que “a amava de verdade”. Depois, como que concluindo o discurso,
acrescenta: “Excepto quando a faço ver cores”. Estas palavras intrigantes,
senão mesmo enigmáticas, tornaram-se o assunto central da terapia de Ceely.
O
pai de Ceely não era um homem forte nem enérgico e encolhia-se perante as
fúrias da sua esposa. Por isto mesmo, oferecia pouca ou nenhuma protecção e
consolo quando o alvo destes ataques era a filha. O relacionamento especial que
Ceely tinha com o pai enfurecia a mãe. Tudo e mais alguma coisa irritava a mãe.
Ceely, porém, era o seu alvo favorito, por ter uma personalidade parecida com a
do pai e uma aparência física oposta à da mãe. Ceely era gorda e silenciosa. A mãe
era faladora e, embora os anos já lhe pesassem, ainda mantinha as curvas
sedutoras dos seus anos de modelo.
A
mãe de Ceely desejava obter a atenção que ao longo do tempo ela mesma tinha
perdido com as suas contundentes palavras de ódio. A sua mãe odiava a vida que
tinha e culpava toda a família pela sua infelicidade, e Ceely, por ser a mais
nova, tinha de a salvar desta vida atormentada. Ceely devia tornar-se na super modelo
e vedeta de anúncios que a sua mãe não tinha conseguido ser devido ao seu mau
temperamento e à sua violência. Se ela não tinha conseguido conquistar a luz
dos holofotes, tinha de ser Ceely a fazê-lo.
Mas
o peso de Ceely era o obstáculo directo às aspirações calculistas da mãe. Por
isso, cada vez que a mãe via Ceely entrar ou sair do chuveiro, era como que um
advertência e uma lembrança visual, alertando-a de que o seu sonho estava em
risco. Nessa altura, agarrava em bocados da pele de Ceely e espremia-os o mais
que podia. Estava literalmente a tentar remover a gordura do corpo de Ceely,
gritando: “Se tu não o perdes, eu tiro-to com as minhas próprias mãos.” A mãe
estava a ver “cores” – era assim que Ceely havia descrito este comportamento da
mãe, uma frase que eu interpreto como sendo o disfarce das fúrias psicóticas
daquela.
Ceely
continuou a descrever maneiras igualmente extremas, embora talvez de uma violência
menos evidente, empregues pela mãe com a intenção de mudar o seu corpo.
Clisteres, laxantes, períodos de jejum forçado durante dias a fio (…) Mesmo
assim, Ceely ganhou peso. Quanto mais a mãe tentava emagrecê-la, mais gorda ela
ficava.
Todas
estas experiências foram contadas pela voz vazia e inexpressiva de uma criança
que há muito deixara de estar no seu próprio corpo. As palavras não correspondiam
nem se ligavam aos traumas que ela descrevia. Em vez disso, estavam marcadas
pela resignação e ausência. Quanto mais ela falava, menos vida havia para ela sentir.
Depois
de cerca de seis meses de terapia em que houve muito pouco diálogo, perguntei a
Ceely porque me tinha contado a sua história e o que é que ela esperava de mim.
A minha questão apanhou-a de surpresa e ela respondeu-me que não sabia. Também
me deu a impressão que me via pela primeira vez em vários meses e comentou que
eu parecia perturbado. Com um olhar de pânico que atravessava a sua cara,
perguntou-me se eu estava zangado com ela, apontando para a minha camisa azul
molhada.
Eu
respondi: “Não, a verdade é que você me faz lembrar uma bela adormecida. Não
estou zangado consigo, mas sim com aquilo que lhe foi feito.” (…)
Ceely
contrariou: “Eu não sou nenhuma beleza. Você diz que não está zangado comigo,
mas está zangado o suficiente para fazer troça de mim.”
Respondi-lhe:
“Não a quis ofender. O que eu disse, para mim, é verdade. Acredito que você é
uma bela adormecida. Você não o reconhece, pois tem estado demasiado ocupada a
proteger-se das agressões da sua mãe. A sua raiva para com a minha observação
diz-me que ainda há vida em si e que o feitiço que silencia as suas emoções está
prestes a ser quebrado.”
Então,
num enredo semelhante ao de tantas outras relações traumáticas que descrevo nas
páginas deste livro, Ceely perguntou: “ Como pode criticar tanto a minha mãe?
Ela só estava a tentar ajudar-me a ficar mais bonita, magra e atraente. A culpa
de nada disto ter resultado e de eu parecer assim é minha. Para além disso, fui
eu que a deixei louca.”
O
verdadeiro trabalho de terapia de Ceely podia agora começar a sério: escrevendo
a sua própria história sem as mentiras, distorções e deturpações que tinha
ouvido sobre si mesma durante muitos anos.
Nos dois anos seguintes, explorámos a relação
que Ceely tinha com a sua mãe. Encorajada por mim, regressou várias vezes às
cenas que, até então, estavam desprovidas de memória pessoal e, aos poucos, em
cada novo recontar, emergiam melhor as suas verdadeiras emoções. O que
originalmente vira como sendo ajuda e orientação por parte da mãe, interpretava
agora como algo cruel, humilhante, perigoso e traumático.
(…)
Nos
avanços e recuos, descobrimos muitas lições juntos e aprendemos muito mais.
Chegámos à conclusão que o perdão é uma decisão própria e que é mais autêntica
quando pensada e reconhecida como paralela a emoções contraditórias. Perdoar
não é esquecer ou permitir a revogação da responsabilidade por actos de
violência ou crueldade. Mesmo sem a expiação da sua mãe, Ceely pôde atenuar a
sua influência, recusando-se a desculpar os seus comportamentos, a aceitar a
culpa por eles e a continuar a viver na vergonha que lhe fora incutida.
Definitivamente, perdoar não é suprimir a ambiguidade, a ambivalência, a raiva,
a mágoa ou até mesmo o desejo de justiça.”
(…)
Richard Raubolt in Cenários
Psicanalíticos do Trauma
segunda-feira, 21 de abril de 2014
O homem que queria ser um rapaz
Mikie, ele preferia Mikie a
Michael. Afirmava que o nome se lhe adequava melhor, “Sabe, não é tão formal”,
e, tal como viria a concluir mais tarde, esse nome também não soava tão adulto.
Quando começou a terapia,
Mikie era um neurocirurgião bem-sucedido e respeitado. Trabalhava duramente
durante muitas horas e era conhecido pela sua paciência, bem como pela sua
competência.
Mikie tinha tudo: uma grande
casa, carros antigos e uma extensa galeria de arte de artistas bem conhecidos.
Mas não tinha esposa, não tinha uma pessoa afectivamente significativa na sua
vida, não tinha um namoro sério nem de qualquer tipo. Mikie estava sozinho e tinha
mesmo desistido de namorar. Geralmente sociável e cheio de sentido de humor,
Mikie foi encaminhado para a terapia devido a uma depressão tão incapacitante
que, na opinião dos seus colegas, podia colocar os seus pacientes em risco.
Como seria de prever, o Dr. Mikie tinha um aspecto abatido, sem um sorriso
visível. Encharcado em suor, com o peito a arfar, assemelhava-se a um atleta de
maratona que acabava de atravessar a linha da meta num esforço inglório. Definitivamente,
não transmitia a imagem de um profissional bem-sucedido.
Ao longo dos meses seguintes,
eu ouvi a sua história. Com o tempo percebi que o que era mais real na sua vida
era a sua depressão e não o cirurgião extrovertido e aparentemente feliz. Na
verdade, ele detestava ter esta “profissão de curar”, interessava-se pouco por
pessoas e estava zangado com as exigências da vida. O que Mikie realmente desejava
era que o deixassem sozinho e que o deixassem brincar.
O seu pai, um homem abatido,
mas sobretudo zangado, era aparentemente incapaz de manter um emprego. Sendo um
mecânico hábil e com o dom da palavra, conseguia arranjar inúmeros empregos,
mas era ainda mais bem-sucedido a perdê-los. O seu humor variava entre o
desespero zangado e momentos calmos e divertidos de prazer, embora, devido ao
seu sarcasmo mordaz, esses momentos acontecessem frequentemente à custa de
alguém. Mikie cresceu sem saber que pai iria chegar a casa à noite. À medida
que ia crescendo, a solução encontrada passava por estar a maior parte possível
do tempo longe de casa.
Conquanto o seu pai não
valorizasse o tempo que ele gastava nos estudos, nem os resultados que obtinha,
Mikie ganhou a atenção e aprovação dos seus professores. Como reconhecimento,
foi premiado com bolsas de estudo para a faculdade de medicina. Do seu pai,
recebeu um desdém amargurado: “O quê? A sub-normalidade do Estado de Illinois
não é suficientemente boa para ti? Harvard é uma treta!”.
Desde que a mãe de Mikie
tinha morrido com cancro no cérebro, tinha ele apenas três anos de idade, que
ele não se lembrava o que era um aconchego calmante nos braços de uma mãe. Também
não tinha ninguém que o ajudasse a sarar as feridas infligidas pela raiva
cortante do pai, disfarçada de “gozo saudável”.
À medida que a terapia
progredia, aumentavam também as desconfianças de Mikie. À medida que nós íamos avançando,
a confiança dele em mim ia diminuindo progressivamente: acusava-me de não o
levar a sério ou de ser demasiado sério, indiferente e técnico. Muitas vezes,
os seus sentimentos estavam restringidos à raiva e ao desespero.
Gradualmente, porém, a sua
raiva tornou-se predominante e ele lançar-se-ia numa fúria incontida se eu
falasse sem a monotonia que ele próprio me tinha atribuído. Fui também instruído
a sentar-me quieto: “Não mexa um músculo”. Se eu falhasse na realização da sua
satisfação, ele soltaria uma invectiva inflamada, exigindo saber quem é que eu
pensava que era.
Este período da terapia durou
cerca de um ano. Nenhuma das intervenções que tentei pareceu ter qualquer
consequência. Um dia, no meu desespero, disse-lhe que não conseguia trabalhar
sob estas orientações impostas: “Você está a cortar a minha circulação vital, o
meu oxigénio emocional, e está a pôr o meu corpo dormente. O mundo estéril e
rarefeito que você está a criar está a ferir-nos a ambos. Não vou continuar
assim. Desta maneira não posso ajudá-lo a si nem a mim próprio.”
Esperei por uma explosão, mas
ela não apareceu. Em vez disso, o que recebi foi aceitação. Aparentemente,
quando quebrei as suas regras, Mikie ficou aliviado. Sozinho, ele tinha apenas
indícios daquilo que lhe tinha acontecido emocionalmente. Agora alguém tinha
colocado isso em palavras. Nesta minha assunção do papel de realizador e
director, ele conseguiu ver o quão “mecanizado e dirigido” se sentia por
dentro.
Mikie tinha crescido
demasiadamente rápido, mas não estava emocionalmente apto para aguentar a
profissão que ele tinha “escolhido”. Tornara-se diferente do seu pai até que,
como se se tivesse aberto um buraco na sua mente, ele sentiu o seu pai dentro
de si, impulsionando-o, empurrando-o, ridicularizando-o. O pai de quem ele teve
de se afastar, o pai que tentou tão arduamente desligar dentro de si mesmo,
através da sobrecompensação de ser o médico bom, paciente e altruísta.
Então, quão intrínsecas
seriam a sua bondade e generosidade e quanto ressentimento, frieza e
distanciamento fariam também parte dele? É com esta questão que agora se debate
internamente, mas penso que ele sente que já cumpriu tempo suficiente como o cirurgião
da sua própria mãe – erradicando e destruindo nos outros a doença que a levou
para longe dele. Agora Mikie necessita de se esquivar ao peso dessa
responsabilidade e, nas suas próprias palavras, ele “só quer brincar, mas não
sozinho”.
Neste momento, começa a falar
como um jovem cheio de expectativas, entusiasmo e desejo de brincar pelo mais
simples e puro prazer de brincar, ao mesmo tempo que também procura descobrir
mais acerca de quem ele é realmente. Mikie está a tomar grandes decisões na sua
vida e colocou uma pausa nos seus compromissos no hospital e na universidade.
Está à procura de uma vida nova, uma vida boa, e eu irei estar com ele, pelo
menos durante uma parte do percurso – e isso será um prazer.
Richard
Raubolt in Cenários Psicanalíticos do Trauma
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segunda-feira, 14 de abril de 2014
domingo, 13 de abril de 2014
Theaters of Trauma - Excerto de Sessão de Richard Raubolt
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A (Re)Criação do Trauma: VI Encontro da AP - Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica (12 de Abril de 2014) |
"Chris was a large, muscular man looking much younger than his fifty-two years of age. (…) Chris was also a non-using addict (not using presently but not in recovery either) who had brutally beaten his son for not answering the phone quickly enough. (…) Chris suggested the boy was exaggerating for attention and “besides he didn’t have it nearly so bad as I did.” He went on: “I could tell you stories but what’s the use? I had it coming.”
After listening to Chris’s stories, which he vaguely began to describe and to which I remained relatively quiet for three months, I began this session as soon as he was seated.
– “When we first began talking I asked you to tell me ‘your story’. We both know you have told me very little but that doesn’t mean I haven’t learned a good deal about you or the kind of help you might need.”
At this point, Chris started to interrupt. Cutting him off firmly, I said:
– “You will extend the same respect I extended you. You will listen while I speak because you have no idea what I am going to say to you or about you.” (…)
Chris remained silent although he continued a dialogue without words. (…)
– “Despite your denials to the contrary, you were beaten again and again as a boy and without mercy or reason. Your mother cowered from your father. She was present, as she had no place to go, but she was empty. She could offer you only a disguise hint of affection. (…) You survive by feeling hate, not showing it to your father… (…). Your mind was so fueled with fantasies of revenge… (…). You became like your father… (…). Still, through it all you wanted your father to notice you, spend time with you and teach you. I think you still want it from him, but since you won’t get it neither will your son. Keep going as you are and you will break your son into the mixed-up, crazy pieces you live with inside of you.
Now the question is: Is this what you want your legacy to be? I don’t want your answer now. (…) I will meet you next week, which gives you time to consider who you are and what you want. This session is over.”
In the next session, Chris started to loudly attack my “story-line”. I stopped him by saying:
– Are you in or out?
– …
(Richard Raubolt, PhD – In “From the Other Side”, Theaters of Trauma, 2010)
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