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sábado, 31 de outubro de 2015

O Preço do Silêncio (in Expresso)

Reflectia eu, por determinada razão, sobre o drama destes miúdos, encolhidos nos seus cantos, repetidamente violentados de várias maneiras, gradualmente mais e mais fragilizados. Pensava eu numa opinião ouvida há uns dias, uma análise acerca da autonomização destes miúdos, 'vítimas de bullying', acerca de formarem a sua identidade com mais facilidade por se encontrarem fora do 'rebanho'. Entendo a lógica mas não podemos ir por aí. É violentíssimo, é terrorismo, é desamor. A autonomização pelo desamor não interessa a ninguém. Então, pensava eu em tudo isto e nem a propósito:"Há pais que ainda acham que o bullying faz parte de uma infância normal, mas o normal são os conflitos, não a violência continuada e intencional”

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Das turbulências


Há dias que são como mares revoltos. Nesses dias, as emoções são fortes. Porque tal como a agitação marítima traz à superfície coisas que habitualmente estão no fundo do mar, a turbulência emocional invoca o que está no mais profundo de nós, misturando tudo à superfície. Se o mar está agitado, mais cedo ou mais tarde, enquanto combatemos as ondas e as correntes, vêm ao de cima os medos mais remotos, as feridas mais antigas e as memórias mais bem guardadas, fazendo-nos sentir ainda mais desamparados face às intempéries. O pânico pode tomar conta. Felizmente, temos também acesso aos nossos recursos e bóias de salvação que fomos armazenando durante o caminho. Afectos positivos, aprendizagens e competências de toda a espécie que mobilizamos para combater tudo o que de mau nos atormenta no meio da tempestade. Na certeza, sempre, que nenhuma tempestade dura para sempre e que a impermanência das coisas é, nestes momentos, uma característica muito útil da condição humana. Depois da tempestade vem a bonança. Isso sim, invariavelmente.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Leveza

Tamara de Lempicka - Beautiful Rafaela

Ceely, uma mulher volumosa de vinte e quatro anos com os olhos profundamente negros e olheiras a combinar, estava inchada na proporção das tareias que tinha levado. Durante os nossos primeiros encontros, ela esperava sentada na minha sala de espera e, quando eu a ia buscar para a nossa sessão, ela sentava-se e agarrava-se com força aos grossos braços de cerejeira da cadeira do consultório, acalmando-se lentamente. (…) Numa voz que me fazia lembrar o delicado chilrear de um pequeno e assustado pássaro ferido, Ceely espontaneamente referiu que estava “para lá dos 150 quilos” e que era assim desde há anos. Rapidamente acrescentou que tinha uma mãe que “a amava de verdade”. Depois, como que concluindo o discurso, acrescenta: “Excepto quando a faço ver cores”. Estas palavras intrigantes, senão mesmo enigmáticas, tornaram-se o assunto central da terapia de Ceely.
O pai de Ceely não era um homem forte nem enérgico e encolhia-se perante as fúrias da sua esposa. Por isto mesmo, oferecia pouca ou nenhuma protecção e consolo quando o alvo destes ataques era a filha. O relacionamento especial que Ceely tinha com o pai enfurecia a mãe. Tudo e mais alguma coisa irritava a mãe. Ceely, porém, era o seu alvo favorito, por ter uma personalidade parecida com a do pai e uma aparência física oposta à da mãe. Ceely era gorda e silenciosa. A mãe era faladora e, embora os anos já lhe pesassem, ainda mantinha as curvas sedutoras dos seus anos de modelo.
A mãe de Ceely desejava obter a atenção que ao longo do tempo ela mesma tinha perdido com as suas contundentes palavras de ódio. A sua mãe odiava a vida que tinha e culpava toda a família pela sua infelicidade, e Ceely, por ser a mais nova, tinha de a salvar desta vida atormentada. Ceely devia tornar-se na super modelo e vedeta de anúncios que a sua mãe não tinha conseguido ser devido ao seu mau temperamento e à sua violência. Se ela não tinha conseguido conquistar a luz dos holofotes, tinha de ser Ceely a fazê-lo.
Mas o peso de Ceely era o obstáculo directo às aspirações calculistas da mãe. Por isso, cada vez que a mãe via Ceely entrar ou sair do chuveiro, era como que um advertência e uma lembrança visual, alertando-a de que o seu sonho estava em risco. Nessa altura, agarrava em bocados da pele de Ceely e espremia-os o mais que podia. Estava literalmente a tentar remover a gordura do corpo de Ceely, gritando: “Se tu não o perdes, eu tiro-to com as minhas próprias mãos.” A mãe estava a ver “cores” – era assim que Ceely havia descrito este comportamento da mãe, uma frase que eu interpreto como sendo o disfarce das fúrias psicóticas daquela.
Ceely continuou a descrever maneiras igualmente extremas, embora talvez de uma violência menos evidente, empregues pela mãe com a intenção de mudar o seu corpo. Clisteres, laxantes, períodos de jejum forçado durante dias a fio (…) Mesmo assim, Ceely ganhou peso. Quanto mais a mãe tentava emagrecê-la, mais gorda ela ficava.
Todas estas experiências foram contadas pela voz vazia e inexpressiva de uma criança que há muito deixara de estar no seu próprio corpo. As palavras não correspondiam nem se ligavam aos traumas que ela descrevia. Em vez disso, estavam marcadas pela resignação e ausência. Quanto mais ela falava, menos vida havia para ela sentir.
Depois de cerca de seis meses de terapia em que houve muito pouco diálogo, perguntei a Ceely porque me tinha contado a sua história e o que é que ela esperava de mim. A minha questão apanhou-a de surpresa e ela respondeu-me que não sabia. Também me deu a impressão que me via pela primeira vez em vários meses e comentou que eu parecia perturbado. Com um olhar de pânico que atravessava a sua cara, perguntou-me se eu estava zangado com ela, apontando para a minha camisa azul molhada.
Eu respondi: “Não, a verdade é que você me faz lembrar uma bela adormecida. Não estou zangado consigo, mas sim com aquilo que lhe foi feito.” (…)
Ceely contrariou: “Eu não sou nenhuma beleza. Você diz que não está zangado comigo, mas está zangado o suficiente para fazer troça de mim.”
Respondi-lhe: “Não a quis ofender. O que eu disse, para mim, é verdade. Acredito que você é uma bela adormecida. Você não o reconhece, pois tem estado demasiado ocupada a proteger-se das agressões da sua mãe. A sua raiva para com a minha observação diz-me que ainda há vida em si e que o feitiço que silencia as suas emoções está prestes a ser quebrado.”
Então, num enredo semelhante ao de tantas outras relações traumáticas que descrevo nas páginas deste livro, Ceely perguntou: “ Como pode criticar tanto a minha mãe? Ela só estava a tentar ajudar-me a ficar mais bonita, magra e atraente. A culpa de nada disto ter resultado e de eu parecer assim é minha. Para além disso, fui eu que a deixei louca.”
O verdadeiro trabalho de terapia de Ceely podia agora começar a sério: escrevendo a sua própria história sem as mentiras, distorções e deturpações que tinha ouvido sobre si mesma durante muitos anos.
 Nos dois anos seguintes, explorámos a relação que Ceely tinha com a sua mãe. Encorajada por mim, regressou várias vezes às cenas que, até então, estavam desprovidas de memória pessoal e, aos poucos, em cada novo recontar, emergiam melhor as suas verdadeiras emoções. O que originalmente vira como sendo ajuda e orientação por parte da mãe, interpretava agora como algo cruel, humilhante, perigoso e traumático.
 (…)
Nos avanços e recuos, descobrimos muitas lições juntos e aprendemos muito mais. Chegámos à conclusão que o perdão é uma decisão própria e que é mais autêntica quando pensada e reconhecida como paralela a emoções contraditórias. Perdoar não é esquecer ou permitir a revogação da responsabilidade por actos de violência ou crueldade. Mesmo sem a expiação da sua mãe, Ceely pôde atenuar a sua influência, recusando-se a desculpar os seus comportamentos, a aceitar a culpa por eles e a continuar a viver na vergonha que lhe fora incutida. Definitivamente, perdoar não é suprimir a ambiguidade, a ambivalência, a raiva, a mágoa ou até mesmo o desejo de justiça.”
(…)

Richard Raubolt in Cenários Psicanalíticos do Trauma

segunda-feira, 21 de abril de 2014

O homem que queria ser um rapaz


Mikie, ele preferia Mikie a Michael. Afirmava que o nome se lhe adequava melhor, “Sabe, não é tão formal”, e, tal como viria a concluir mais tarde, esse nome também não soava tão adulto.
Quando começou a terapia, Mikie era um neurocirurgião bem-sucedido e respeitado. Trabalhava duramente durante muitas horas e era conhecido pela sua paciência, bem como pela sua competência.
Mikie tinha tudo: uma grande casa, carros antigos e uma extensa galeria de arte de artistas bem conhecidos. Mas não tinha esposa, não tinha uma pessoa afectivamente significativa na sua vida, não tinha um namoro sério nem de qualquer tipo. Mikie estava sozinho e tinha mesmo desistido de namorar. Geralmente sociável e cheio de sentido de humor, Mikie foi encaminhado para a terapia devido a uma depressão tão incapacitante que, na opinião dos seus colegas, podia colocar os seus pacientes em risco. Como seria de prever, o Dr. Mikie tinha um aspecto abatido, sem um sorriso visível. Encharcado em suor, com o peito a arfar, assemelhava-se a um atleta de maratona que acabava de atravessar a linha da meta num esforço inglório. Definitivamente, não transmitia a imagem de um profissional bem-sucedido.
Ao longo dos meses seguintes, eu ouvi a sua história. Com o tempo percebi que o que era mais real na sua vida era a sua depressão e não o cirurgião extrovertido e aparentemente feliz. Na verdade, ele detestava ter esta “profissão de curar”, interessava-se pouco por pessoas e estava zangado com as exigências da vida. O que Mikie realmente desejava era que o deixassem sozinho e que o deixassem brincar.
O seu pai, um homem abatido, mas sobretudo zangado, era aparentemente incapaz de manter um emprego. Sendo um mecânico hábil e com o dom da palavra, conseguia arranjar inúmeros empregos, mas era ainda mais bem-sucedido a perdê-los. O seu humor variava entre o desespero zangado e momentos calmos e divertidos de prazer, embora, devido ao seu sarcasmo mordaz, esses momentos acontecessem frequentemente à custa de alguém. Mikie cresceu sem saber que pai iria chegar a casa à noite. À medida que ia crescendo, a solução encontrada passava por estar a maior parte possível do tempo longe de casa.
Conquanto o seu pai não valorizasse o tempo que ele gastava nos estudos, nem os resultados que obtinha, Mikie ganhou a atenção e aprovação dos seus professores. Como reconhecimento, foi premiado com bolsas de estudo para a faculdade de medicina. Do seu pai, recebeu um desdém amargurado: “O quê? A sub-normalidade do Estado de Illinois não é suficientemente boa para ti? Harvard é uma treta!”.
Desde que a mãe de Mikie tinha morrido com cancro no cérebro, tinha ele apenas três anos de idade, que ele não se lembrava o que era um aconchego calmante nos braços de uma mãe. Também não tinha ninguém que o ajudasse a sarar as feridas infligidas pela raiva cortante do pai, disfarçada de “gozo saudável”.
À medida que a terapia progredia, aumentavam também as desconfianças de Mikie. À medida que nós íamos avançando, a confiança dele em mim ia diminuindo progressivamente: acusava-me de não o levar a sério ou de ser demasiado sério, indiferente e técnico. Muitas vezes, os seus sentimentos estavam restringidos à raiva e ao desespero.
Gradualmente, porém, a sua raiva tornou-se predominante e ele lançar-se-ia numa fúria incontida se eu falasse sem a monotonia que ele próprio me tinha atribuído. Fui também instruído a sentar-me quieto: “Não mexa um músculo”. Se eu falhasse na realização da sua satisfação, ele soltaria uma invectiva inflamada, exigindo saber quem é que eu pensava que era.
Este período da terapia durou cerca de um ano. Nenhuma das intervenções que tentei pareceu ter qualquer consequência. Um dia, no meu desespero, disse-lhe que não conseguia trabalhar sob estas orientações impostas: “Você está a cortar a minha circulação vital, o meu oxigénio emocional, e está a pôr o meu corpo dormente. O mundo estéril e rarefeito que você está a criar está a ferir-nos a ambos. Não vou continuar assim. Desta maneira não posso ajudá-lo a si nem a mim próprio.”
Esperei por uma explosão, mas ela não apareceu. Em vez disso, o que recebi foi aceitação. Aparentemente, quando quebrei as suas regras, Mikie ficou aliviado. Sozinho, ele tinha apenas indícios daquilo que lhe tinha acontecido emocionalmente. Agora alguém tinha colocado isso em palavras. Nesta minha assunção do papel de realizador e director, ele conseguiu ver o quão “mecanizado e dirigido” se sentia por dentro.
Mikie tinha crescido demasiadamente rápido, mas não estava emocionalmente apto para aguentar a profissão que ele tinha “escolhido”. Tornara-se diferente do seu pai até que, como se se tivesse aberto um buraco na sua mente, ele sentiu o seu pai dentro de si, impulsionando-o, empurrando-o, ridicularizando-o. O pai de quem ele teve de se afastar, o pai que tentou tão arduamente desligar dentro de si mesmo, através da sobrecompensação de ser o médico bom, paciente e altruísta.
Então, quão intrínsecas seriam a sua bondade e generosidade e quanto ressentimento, frieza e distanciamento fariam também parte dele? É com esta questão que agora se debate internamente, mas penso que ele sente que já cumpriu tempo suficiente como o cirurgião da sua própria mãe – erradicando e destruindo nos outros a doença que a levou para longe dele. Agora Mikie necessita de se esquivar ao peso dessa responsabilidade e, nas suas próprias palavras, ele “só quer brincar, mas não sozinho”.
Neste momento, começa a falar como um jovem cheio de expectativas, entusiasmo e desejo de brincar pelo mais simples e puro prazer de brincar, ao mesmo tempo que também procura descobrir mais acerca de quem ele é realmente. Mikie está a tomar grandes decisões na sua vida e colocou uma pausa nos seus compromissos no hospital e na universidade. Está à procura de uma vida nova, uma vida boa, e eu irei estar com ele, pelo menos durante uma parte do percurso – e isso será um prazer.

Richard Raubolt in Cenários Psicanalíticos do Trauma


domingo, 13 de abril de 2014

Theaters of Trauma - Excerto de Sessão de Richard Raubolt

A (Re)Criação do Trauma: VI Encontro da AP - Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica (12 de Abril de 2014)

"Chris was a large, muscular man looking much younger than his fifty-two years of age. (…) Chris was also a non-using addict (not using presently but not in recovery either) who had brutally beaten his son for not answering the phone quickly enough. (…) Chris suggested the boy was exaggerating for attention and “besides he didn’t have it nearly so bad as I did.” He went on: “I could tell you stories but what’s the use? I had it coming.”
After listening to Chris’s stories, which he vaguely began to describe and to which I remained relatively quiet for three months, I began this session as soon as he was seated.
– “When we first began talking I asked you to tell me ‘your story’. We both know you have told me very little but that doesn’t mean I haven’t learned a good deal about you or the kind of help you might need.”
At this point, Chris started to interrupt. Cutting him off firmly, I said:
– “You will extend the same respect I extended you. You will listen while I speak because you have no idea what I am going to say to you or about you.” (…) 
Chris remained silent although he continued a dialogue without words. (…)
– “Despite your denials to the contrary, you were beaten again and again as a boy and without mercy or reason. Your mother cowered from your father. She was present, as she had no place to go, but she was empty. She could offer you only a disguise hint of affection. (…) You survive by feeling hate, not showing it to your father… (…). Your mind was so fueled with fantasies of revenge… (…). You became like your father… (…). Still, through it all you wanted your father to notice you, spend time with you and teach you. I think you still want it from him, but since you won’t get it neither will your son. Keep going as you are and you will break your son into the mixed-up, crazy pieces you live with inside of you.
Now the question is: Is this what you want your legacy to be? I don’t want your answer now. (…) I will meet you next week, which gives you time to consider who you are and what you want. This session is over.”
In the next session, Chris started to loudly attack my “story-line”. I stopped him by saying:
    Are you in or out?
    … 
(Richard Raubolt, PhD – In “From the Other Side”, Theaters of Trauma, 2010)