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Tamara de Lempicka - Beautiful Rafaela |
Ceely,
uma mulher volumosa de vinte e quatro anos com os olhos profundamente negros e
olheiras a combinar, estava inchada na proporção das tareias que tinha levado. Durante
os nossos primeiros encontros, ela esperava sentada na minha sala de espera e,
quando eu a ia buscar para a nossa sessão, ela sentava-se e agarrava-se com
força aos grossos braços de cerejeira da cadeira do consultório, acalmando-se
lentamente. (…) Numa voz que me fazia lembrar o delicado chilrear de um pequeno
e assustado pássaro ferido, Ceely espontaneamente referiu que estava “para lá
dos 150 quilos” e que era assim desde há anos. Rapidamente acrescentou que
tinha uma mãe que “a amava de verdade”. Depois, como que concluindo o discurso,
acrescenta: “Excepto quando a faço ver cores”. Estas palavras intrigantes,
senão mesmo enigmáticas, tornaram-se o assunto central da terapia de Ceely.
O
pai de Ceely não era um homem forte nem enérgico e encolhia-se perante as
fúrias da sua esposa. Por isto mesmo, oferecia pouca ou nenhuma protecção e
consolo quando o alvo destes ataques era a filha. O relacionamento especial que
Ceely tinha com o pai enfurecia a mãe. Tudo e mais alguma coisa irritava a mãe.
Ceely, porém, era o seu alvo favorito, por ter uma personalidade parecida com a
do pai e uma aparência física oposta à da mãe. Ceely era gorda e silenciosa. A mãe
era faladora e, embora os anos já lhe pesassem, ainda mantinha as curvas
sedutoras dos seus anos de modelo.
A
mãe de Ceely desejava obter a atenção que ao longo do tempo ela mesma tinha
perdido com as suas contundentes palavras de ódio. A sua mãe odiava a vida que
tinha e culpava toda a família pela sua infelicidade, e Ceely, por ser a mais
nova, tinha de a salvar desta vida atormentada. Ceely devia tornar-se na super modelo
e vedeta de anúncios que a sua mãe não tinha conseguido ser devido ao seu mau
temperamento e à sua violência. Se ela não tinha conseguido conquistar a luz
dos holofotes, tinha de ser Ceely a fazê-lo.
Mas
o peso de Ceely era o obstáculo directo às aspirações calculistas da mãe. Por
isso, cada vez que a mãe via Ceely entrar ou sair do chuveiro, era como que um
advertência e uma lembrança visual, alertando-a de que o seu sonho estava em
risco. Nessa altura, agarrava em bocados da pele de Ceely e espremia-os o mais
que podia. Estava literalmente a tentar remover a gordura do corpo de Ceely,
gritando: “Se tu não o perdes, eu tiro-to com as minhas próprias mãos.” A mãe
estava a ver “cores” – era assim que Ceely havia descrito este comportamento da
mãe, uma frase que eu interpreto como sendo o disfarce das fúrias psicóticas
daquela.
Ceely
continuou a descrever maneiras igualmente extremas, embora talvez de uma violência
menos evidente, empregues pela mãe com a intenção de mudar o seu corpo.
Clisteres, laxantes, períodos de jejum forçado durante dias a fio (…) Mesmo
assim, Ceely ganhou peso. Quanto mais a mãe tentava emagrecê-la, mais gorda ela
ficava.
Todas
estas experiências foram contadas pela voz vazia e inexpressiva de uma criança
que há muito deixara de estar no seu próprio corpo. As palavras não correspondiam
nem se ligavam aos traumas que ela descrevia. Em vez disso, estavam marcadas
pela resignação e ausência. Quanto mais ela falava, menos vida havia para ela sentir.
Depois
de cerca de seis meses de terapia em que houve muito pouco diálogo, perguntei a
Ceely porque me tinha contado a sua história e o que é que ela esperava de mim.
A minha questão apanhou-a de surpresa e ela respondeu-me que não sabia. Também
me deu a impressão que me via pela primeira vez em vários meses e comentou que
eu parecia perturbado. Com um olhar de pânico que atravessava a sua cara,
perguntou-me se eu estava zangado com ela, apontando para a minha camisa azul
molhada.
Eu
respondi: “Não, a verdade é que você me faz lembrar uma bela adormecida. Não
estou zangado consigo, mas sim com aquilo que lhe foi feito.” (…)
Ceely
contrariou: “Eu não sou nenhuma beleza. Você diz que não está zangado comigo,
mas está zangado o suficiente para fazer troça de mim.”
Respondi-lhe:
“Não a quis ofender. O que eu disse, para mim, é verdade. Acredito que você é
uma bela adormecida. Você não o reconhece, pois tem estado demasiado ocupada a
proteger-se das agressões da sua mãe. A sua raiva para com a minha observação
diz-me que ainda há vida em si e que o feitiço que silencia as suas emoções está
prestes a ser quebrado.”
Então,
num enredo semelhante ao de tantas outras relações traumáticas que descrevo nas
páginas deste livro, Ceely perguntou: “ Como pode criticar tanto a minha mãe?
Ela só estava a tentar ajudar-me a ficar mais bonita, magra e atraente. A culpa
de nada disto ter resultado e de eu parecer assim é minha. Para além disso, fui
eu que a deixei louca.”
O
verdadeiro trabalho de terapia de Ceely podia agora começar a sério: escrevendo
a sua própria história sem as mentiras, distorções e deturpações que tinha
ouvido sobre si mesma durante muitos anos.
Nos dois anos seguintes, explorámos a relação
que Ceely tinha com a sua mãe. Encorajada por mim, regressou várias vezes às
cenas que, até então, estavam desprovidas de memória pessoal e, aos poucos, em
cada novo recontar, emergiam melhor as suas verdadeiras emoções. O que
originalmente vira como sendo ajuda e orientação por parte da mãe, interpretava
agora como algo cruel, humilhante, perigoso e traumático.
(…)
Nos
avanços e recuos, descobrimos muitas lições juntos e aprendemos muito mais.
Chegámos à conclusão que o perdão é uma decisão própria e que é mais autêntica
quando pensada e reconhecida como paralela a emoções contraditórias. Perdoar
não é esquecer ou permitir a revogação da responsabilidade por actos de
violência ou crueldade. Mesmo sem a expiação da sua mãe, Ceely pôde atenuar a
sua influência, recusando-se a desculpar os seus comportamentos, a aceitar a
culpa por eles e a continuar a viver na vergonha que lhe fora incutida.
Definitivamente, perdoar não é suprimir a ambiguidade, a ambivalência, a raiva,
a mágoa ou até mesmo o desejo de justiça.”
(…)
Richard Raubolt in Cenários
Psicanalíticos do Trauma