Mikie, ele preferia Mikie a
Michael. Afirmava que o nome se lhe adequava melhor, “Sabe, não é tão formal”,
e, tal como viria a concluir mais tarde, esse nome também não soava tão adulto.
Quando começou a terapia,
Mikie era um neurocirurgião bem-sucedido e respeitado. Trabalhava duramente
durante muitas horas e era conhecido pela sua paciência, bem como pela sua
competência.
Mikie tinha tudo: uma grande
casa, carros antigos e uma extensa galeria de arte de artistas bem conhecidos.
Mas não tinha esposa, não tinha uma pessoa afectivamente significativa na sua
vida, não tinha um namoro sério nem de qualquer tipo. Mikie estava sozinho e tinha
mesmo desistido de namorar. Geralmente sociável e cheio de sentido de humor,
Mikie foi encaminhado para a terapia devido a uma depressão tão incapacitante
que, na opinião dos seus colegas, podia colocar os seus pacientes em risco.
Como seria de prever, o Dr. Mikie tinha um aspecto abatido, sem um sorriso
visível. Encharcado em suor, com o peito a arfar, assemelhava-se a um atleta de
maratona que acabava de atravessar a linha da meta num esforço inglório. Definitivamente,
não transmitia a imagem de um profissional bem-sucedido.
Ao longo dos meses seguintes,
eu ouvi a sua história. Com o tempo percebi que o que era mais real na sua vida
era a sua depressão e não o cirurgião extrovertido e aparentemente feliz. Na
verdade, ele detestava ter esta “profissão de curar”, interessava-se pouco por
pessoas e estava zangado com as exigências da vida. O que Mikie realmente desejava
era que o deixassem sozinho e que o deixassem brincar.
O seu pai, um homem abatido,
mas sobretudo zangado, era aparentemente incapaz de manter um emprego. Sendo um
mecânico hábil e com o dom da palavra, conseguia arranjar inúmeros empregos,
mas era ainda mais bem-sucedido a perdê-los. O seu humor variava entre o
desespero zangado e momentos calmos e divertidos de prazer, embora, devido ao
seu sarcasmo mordaz, esses momentos acontecessem frequentemente à custa de
alguém. Mikie cresceu sem saber que pai iria chegar a casa à noite. À medida
que ia crescendo, a solução encontrada passava por estar a maior parte possível
do tempo longe de casa.
Conquanto o seu pai não
valorizasse o tempo que ele gastava nos estudos, nem os resultados que obtinha,
Mikie ganhou a atenção e aprovação dos seus professores. Como reconhecimento,
foi premiado com bolsas de estudo para a faculdade de medicina. Do seu pai,
recebeu um desdém amargurado: “O quê? A sub-normalidade do Estado de Illinois
não é suficientemente boa para ti? Harvard é uma treta!”.
Desde que a mãe de Mikie
tinha morrido com cancro no cérebro, tinha ele apenas três anos de idade, que
ele não se lembrava o que era um aconchego calmante nos braços de uma mãe. Também
não tinha ninguém que o ajudasse a sarar as feridas infligidas pela raiva
cortante do pai, disfarçada de “gozo saudável”.
À medida que a terapia
progredia, aumentavam também as desconfianças de Mikie. À medida que nós íamos avançando,
a confiança dele em mim ia diminuindo progressivamente: acusava-me de não o
levar a sério ou de ser demasiado sério, indiferente e técnico. Muitas vezes,
os seus sentimentos estavam restringidos à raiva e ao desespero.
Gradualmente, porém, a sua
raiva tornou-se predominante e ele lançar-se-ia numa fúria incontida se eu
falasse sem a monotonia que ele próprio me tinha atribuído. Fui também instruído
a sentar-me quieto: “Não mexa um músculo”. Se eu falhasse na realização da sua
satisfação, ele soltaria uma invectiva inflamada, exigindo saber quem é que eu
pensava que era.
Este período da terapia durou
cerca de um ano. Nenhuma das intervenções que tentei pareceu ter qualquer
consequência. Um dia, no meu desespero, disse-lhe que não conseguia trabalhar
sob estas orientações impostas: “Você está a cortar a minha circulação vital, o
meu oxigénio emocional, e está a pôr o meu corpo dormente. O mundo estéril e
rarefeito que você está a criar está a ferir-nos a ambos. Não vou continuar
assim. Desta maneira não posso ajudá-lo a si nem a mim próprio.”
Esperei por uma explosão, mas
ela não apareceu. Em vez disso, o que recebi foi aceitação. Aparentemente,
quando quebrei as suas regras, Mikie ficou aliviado. Sozinho, ele tinha apenas
indícios daquilo que lhe tinha acontecido emocionalmente. Agora alguém tinha
colocado isso em palavras. Nesta minha assunção do papel de realizador e
director, ele conseguiu ver o quão “mecanizado e dirigido” se sentia por
dentro.
Mikie tinha crescido
demasiadamente rápido, mas não estava emocionalmente apto para aguentar a
profissão que ele tinha “escolhido”. Tornara-se diferente do seu pai até que,
como se se tivesse aberto um buraco na sua mente, ele sentiu o seu pai dentro
de si, impulsionando-o, empurrando-o, ridicularizando-o. O pai de quem ele teve
de se afastar, o pai que tentou tão arduamente desligar dentro de si mesmo,
através da sobrecompensação de ser o médico bom, paciente e altruísta.
Então, quão intrínsecas
seriam a sua bondade e generosidade e quanto ressentimento, frieza e
distanciamento fariam também parte dele? É com esta questão que agora se debate
internamente, mas penso que ele sente que já cumpriu tempo suficiente como o cirurgião
da sua própria mãe – erradicando e destruindo nos outros a doença que a levou
para longe dele. Agora Mikie necessita de se esquivar ao peso dessa
responsabilidade e, nas suas próprias palavras, ele “só quer brincar, mas não
sozinho”.
Neste momento, começa a falar
como um jovem cheio de expectativas, entusiasmo e desejo de brincar pelo mais
simples e puro prazer de brincar, ao mesmo tempo que também procura descobrir
mais acerca de quem ele é realmente. Mikie está a tomar grandes decisões na sua
vida e colocou uma pausa nos seus compromissos no hospital e na universidade.
Está à procura de uma vida nova, uma vida boa, e eu irei estar com ele, pelo
menos durante uma parte do percurso – e isso será um prazer.
Richard
Raubolt in Cenários Psicanalíticos do Trauma