Transformação é a palavra-chave. Na vida ou há desenvolvimento ou instala-se a decadência. O estacionamento é uma ilusão. Nas palavras de Cervantes, “A estrada é sempre melhor que a estalagem” (António Coimbra de Matos)
quarta-feira, 23 de dezembro de 2015
quarta-feira, 16 de dezembro de 2015
segunda-feira, 7 de dezembro de 2015
O Sabotador Interno
Dentro de nós pode habitar uma parte hostil e que rejeita,
inconscientemente, qualquer tipo de experiência positiva, prazer ou
gratificação. O 'sabotador interno' de Fairbairn (Ego Anti Libidinal)
corresponde à parte do ego que se identificou a um objecto frustrante/rejeitante
(ou às experiências precoces vividas como frustrantes e impeditivas).
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terça-feira, 24 de novembro de 2015
O Homem na Arena
Arena de Pula, Croácia |
"Não é o crítico que importa; nem
aquele que aponta onde foi que o homem tropeçou ou como poderia ter feito
melhor. O crédito pertence ao homem que está na arena, cujo rosto está manchado
de pó e suor e sangue; que luta com bravura; que erra, que desaponta uma e
outra vez, porque não há esforço sem erros e decepções; mas que, na verdade, se
empenha nos seus feitos; que conhece grandes entusiasmos, as maiores paixões; que
se entrega a uma causa digna; que, no melhor dos casos, conhece por fim o
triunfo da grande conquista e, no pior, se fracassar, fracassa ousando
grandemente (...)"
— Theodore Roosevelt
domingo, 22 de novembro de 2015
quarta-feira, 18 de novembro de 2015
Paisagens Humanas
Fotografia de Finn Beales |
Fotografia de Sofia Pracana |
Fotografia de Finn Beales |
Há pessoas que são florestas cerradas. Oferecem caminhos
sinuosos, por vezes agrestes, entre o denso arvoredo. Envolvem-nos em nevoeiro,
atirando-nos ao arrepio de enredos misteriosos enquanto o diabo esfrega um
olho. O dia é curto, a noite é longa. E há as sombras. Pressentimos que muito se
esconde entre as sombras mas, como não nos é permitido perceber o que é, o descanso não tem lugar aqui;
vigilantes, os sentidos precisam de se certificar que não nos perdemos ou que
nenhum animal à solta nos surpreenderá. Lembramo-nos destas pessoas com o
fascínio que nos despertam os lugares inóspitos, muito belos na sua natureza mas que não se permitem habitar.
Há pessoas que são grandes cidades. Espaços pulsantes,
agitados, que nos oferecem luzes, entretenimento e cultura, e nos fascinam pelo
seu charme e movimento. Oferecem-nos um pouco de tudo excepto o silêncio e a
possibilidade de contemplação que nos faz falta. Também as luzes podem ofuscar.
Não há grandes perigos mas o ruído impera, cansando-nos. Depois, o tempo aqui é
demasiado veloz, não há espaço para o tédio nem para a placidez. Recordamos
estas pessoas com o sorriso que nos desperta a chegada de madrugada a uma
metrópole que nunca dorme.
Há pessoas que são praias abertas. Lugares luminosos,
amenos, cujos areais se estendem ao alcance dos nossos olhos. E ali nos espraiamos, horizonte sempre à vista, descansando o corpo e o espírito. Podemos
correr, podemos dormir, podemos tomar banho. Podemos despir-nos sem pudor. O
tempo corre sem pressas. Faltará, porém, alguma da energia vibrante que
encontrámos noutros lugares, florestas e cidades desse mundo. Faltará o
arrebatamento. Lembramo-nos destas pessoas com a serenidade de quem chega a casa.
A diversidade natural é a maior riqueza do nosso planeta.
Que se saiba, não há ainda outro igual: tantos cenários, tanta
complexidade. Da mesma forma nos encanta o espectro humano. É nessa
multiplicidade que nos desenvolvemos. Entre florestas, praias e
cidades, viver é precisamente ir explorando todos os ambientes com a curiosidade que
nos é inata, retirar o melhor de cada um e descobrir onde queremos morar, onde seremos mais felizes, a cada momento.
domingo, 8 de novembro de 2015
Do que aprendi
Aprendi com tudo isso que aprende mais rápido quem sabe olhar
em diferentes direcções e adopta novos ângulos de visão; aprende mais rápido
quem escuta o outro, quem se dispõe a abandonar os seus desejos ou crenças para
criar espaço; aprende mais rápido quem é humilde e também quem aceita sem
oferecer excessiva resistência; aprende mais rápido quem não tem medo de dobrar
ou de cair e quem se ri de si mesmo quando tal acontece; aprende mais rápido
quem não se deixa apanhar pela vergonha de falhar, de fazer mal feito; aprende
mais rápido quem se expõe, porque se arrisca; aprende mais rápido quem se
desapega da prepotência de querer aquilo naquele momento e daquela maneira: às
vezes não dá. Aprende mais rápido quem tenta distinguir o possível do
impossível. Ou seja, aprende mais rápido quem respeita a realidade enquanto ser
gigante que não se verga e por isso aceita a impotência de viver nela e com
ela. Aprende mais rápido quem não perde mais que o tempo suficiente a
lamentar-se ou a enraivecer-se com isso. Aprende mais rápido que tem essa
capacidade de ajustamento e/ou adaptação. Porém, aprende mais rápido quem se
permite sair da harmonia da adaptação quando surgem perguntas e se impõe um
outro entendimento. De resto, e enquanto isto, aprende sempre mais rápido quem
intui que o tempo também tem o seu papel e escolhe avançar — à distância
entendem-se melhor as coisas.
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sábado, 31 de outubro de 2015
O Preço do Silêncio (in Expresso)
Reflectia eu, por determinada razão, sobre o drama destes
miúdos, encolhidos nos seus cantos, repetidamente violentados de várias
maneiras, gradualmente mais e mais fragilizados. Pensava eu numa opinião ouvida
há uns dias, uma análise acerca da autonomização destes miúdos, 'vítimas de
bullying', acerca de formarem a sua identidade com mais facilidade por se
encontrarem fora do 'rebanho'. Entendo a lógica mas não podemos ir por aí. É
violentíssimo, é terrorismo, é desamor. A autonomização pelo desamor não interessa
a ninguém. Então, pensava eu em tudo isto e nem a propósito:"Há pais que
ainda acham que o bullying faz parte de uma infância normal, mas o normal são
os conflitos, não a violência continuada e intencional”
segunda-feira, 12 de outubro de 2015
segunda-feira, 5 de outubro de 2015
Altruísmo, Egoísmo e Amor-Próprio
A
nossa cultura, de forte tradição judaico-cristã, apela ao amor ao próximo. Mas
se amar os outros é uma virtude, tantas vezes se insinuou que amar-se a si mesmo seria um “pecado”. Aliás, Calvino referia-se
ao amor-próprio como se fosse
uma “peste”. Fazia-se então, mais do que hoje, o elogio da capacidade de
sacrifício. Partia-se do ponto de vista que o amor pelo outro e o amor por nós
mesmos são dois tipos de amor que se excluem mutuamente. Hoje sabemos que o
amor pelo outro não pode sequer existir sem que, primeiro e/ou simultaneamente,
exista amor-próprio.
O
amor pelo outro implica o respeito pelo ser humano em geral, e eu sou tão ser
humano quanto todos os outros. Repare-se que mesmo a Bíblia não nos ensinou a
colocar o outro como prioridade, mas sim em igualdade, pois diz-nos “ama o
próximo como a ti mesmo”. O respeito pela nossa integridade e o amor pelo nosso
“eu” não podem ser dissociados do respeito e amor pelos outros seres. Assim, as
atitudes de amor (por nós e pelo outro) não são uma disjunção (ou uma ou outra)
mas, sim, uma conjunção (uma e outra).
Apesar
de todo este conhecimento teórico, é com facilidade que, no dia-a-dia, ainda se
apregoa como grande virtude de carácter o facto de se "pensar mais nos
outros do que em si mesmo". É uma tendência enraizada da dita cultura, que
conduz a uma incondicional admiração do chamado “altruísmo” (dedicação ao
outro) e da instituída confusão entre amor-próprio e egoísmo (dedicação a si
mesmo). Quanto ao altruísmo, entenda-se que um sujeito cujo sentido da vida
é viver para os outros, não pode viver em amor: a negligência de si mesmo,
resulta, mais cedo ou mais tarde, numa hostilidade escondida e/ou inconsciente
para com o mundo ― zanga, amargura, frustração e sensação de injustiça/défice ―
dados os sucessivos desrespeitos a que a pessoa se sujeita. O esvaziar-se de si
não pode ser considerado uma coisa boa. Da mesma forma, o encher-se de si e só
de si, aquilo a que chamamos egoísmo, não se pode confundir com amor-próprio.
Egoísta é aquele que apenas se interessa por si mesmo, que quer tudo para si e
que não retira qualquer prazer do acto de dar, pois apenas pretende receber. E
o segredo está no facto de que o sujeito egoísta, ao contrário do que possa
parecer, não se ama a si mesmo: está profundamente necessitado, como tal, pouco
tem a oferecer. Assim, egoísmo e amor-próprio, não só não são nada semelhantes,
como são profundamente distintos e mesmo contraditórios. Torna-se
então fácil distinguir aquele que se ama (pois também ama o outro mas sempre
com equilíbrio e com balizas) daquele que, precisamente por não se amar, não
pode nem consegue amar mais ninguém.
Queiramos
ou não, nós somos e devemos ser o nosso centro. E só em paz com isso, capazes
de nos amarmos, seremos capazes de amar o próximo. Mães mais felizes são
melhores mães. Filhos mais felizes são melhores filhos. Homens e mulheres mais
felizes são melhores amantes. Que cada um se respeite e se ame
para, de barriga cheia, possamos amar o outro e dedicar-lhe o melhor de nós,
sempre porque queremos e não porque devemos.
quarta-feira, 26 de agosto de 2015
Da necessidade ao desejo
Há
coisas que precisamos e das quais dependemos (necessidades) e coisas que
queremos porque assim escolhemos (desejos). A necessidade diz respeito a algo muito
básico, mais primário na nossa condição humana. Fala-nos de algo que nem se
sabe bem porque acontece: só se sabe que se precisa e que é assim, queira-se ou
não se queira. Assim, quando a necessidade não é satisfeita, permanece, sob a
forma de uma falha básica dentro de nós. Já o desejo é de outra ordem. O desejo
é secundário, na medida em que chega depois. Pressupõe algo que não é absolutamente
fundamental mas que representa um valor acrescentado à nossa vida. É algo que
foi pensado, sonhado, de forma mais consciente, e que não nos é imposto de
dentro.
De
uma forma geral, o caminho do desenvolvimento humano faz-se evoluindo da
necessidade para o desejo. Enquanto bebés, temos muitas necessidades, mas não desejos,
no sentido referido de escolhas pensadas, conscientes. Chegamos a “seres desejantes”
à medida que crescemos e se existiu possibilidade de atender suficientemente às
necessidades. Caso contrário, ficamos bloqueados ou suspensos na carência
primária, que tornará a busca dessa satisfação uma prioridade para nós. O
caminho de amadurecimento do Eu não acontece se há privação nas necessidades
mais fundamentais.
Então a necessidade coloca-nos no campo das dependências, enquanto o desejo nos fala de
escolhas livres. Eu só desejo quando já não preciso, até lá, necessito e
dependo disso, tantas vezes, para minha sobrevivência. Há uma fome daquilo que
me falta que ainda me esmaga. E enquanto assim for, estou no campo da
necessidade, aquém do desejo. Se nunca recebi afecto, estou imerso na sua
carência e ele representa, naturalmente, uma busca incessante. Mas se recebi
afecto suficiente, consigo aguentar melhor a sua eventual ausência, passando de
uma questão de sobrevivência a um desejo que está por realizar.
Assim,
no amor romântico, a diferença entre "preciso de ti" e "quero-te"
é uma diferença que corresponde aos quilómetros de amadurecimento que vão da
necessidade ao desejo. É poético dizer a alguém "preciso de ti". A
mistura entre necessidade e desejo, característica na paixão, alimenta as artes
desde sempre, apresentando o amor romântico como uma coisa quase visceral. Mas o
amor homem-mulher, amor erótico de seu nome, corresponde, em maior escala, a um
desejo e não a uma necessidade. Eu estou contigo não porque preciso de ti mas
sim porque te quero. Porque te escolhi. Não morro se fores embora mas sou muito
mais feliz contigo.
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terça-feira, 28 de julho de 2015
quinta-feira, 23 de julho de 2015
Faça você mesmo: Sobre a auto-suficiência
Liekeland |
De
há muito tempo para cá que o Homem tem tentado, por todos os meios, ser cada
vez mais auto-suficiente. Precisar, cada vez menos, do que quer que seja. Estar
preparado para tudo e superar todos os desafios. De quanto menos recursos
precisar (materiais ou humanos), melhor. As palavras de ordem são, por exemplo,
“faça você mesmo”, “guia de auto-ajuda”, “self-service”. Cada vez mais
poderosos, cada vez mais competentes ou, bem vistas as coisas, cada vez mais
sós.
É. No
dia em que eu achar não precisar do outro para mais nada, morrerei: encerrado em mim mesmo,
tendo por companhia a solidão ou a omnipotência. No filme “Into The Wild”,
baseado numa história verídica, percebemos que, em última análise, é a fuga do
mundo e dos outros que fazem parte do mundo que acaba por destruir Christopher
McCandless: o isolamento, confundido com
autonomia, mata. Mais cedo ou mais tarde, precisamos sempre de alguém. Somos
seres gregários, isto é, que se agregam. E isso tem funcionado bem, ao longo de
toda a humanidade. Cooperamos, coligamos, colaboramos, ou seja,
relacionamo-nos. Somos, por todos estes motivos, seres que interdependem. Querer
negar isto é negar a condição humana. “Eu não preciso de ninguém” é querer tornar-se
bicho ou máquina, sendo que nem alguns bichos conseguem sobreviver sós e que
mesmo uma máquina precisa de alguém que a manobre, a dado momento.
Nascemos
a precisar do outro e provavelmente, morreremos precisando do outro. Durante o
caminho, percorremos alguns trilhos de autonomização, de crescimento e
diferenciação, mas vivemos sempre numa autonomia relativa. Perceber e aceitar
isto é poder também serenar. Perceber que isso está na
nossa natureza, desde os primórdios da espécie. Que não ser auto-suficiente não
é um crime, pelo contrário: é a condição humana no seu melhor.
Sem
dúvida que no outro extremo se pode encontrar o excesso de dependência, a
incapacidade de ser autónomo e de tomar conta da nossa vida. São histórias de
meninos pendurados no pescoço de suas mães ou sentados em qualquer colo que
lhes apareça pela frente. São histórias de crescimentos boicotados, suspensos
ou esburacados. Sem dúvida, portanto, que o caminho da saúde mental passa por
uma autonomização “suficientemente boa” e consequente crescimento pessoal. Sem
a capacidade de estar só, será difícil construir uma vida adulta de qualidade. Como
ouvi recentemente, sem sermos um bom ímpar, não seremos um bom par. O problema então
não será depender do outro, mas em que medida dependemos. Há algures, parece,
uma medida mais ou menos saudável para isto de precisarmos sempre de alguém.
quarta-feira, 15 de julho de 2015
quarta-feira, 8 de julho de 2015
terça-feira, 7 de julho de 2015
O Cansaço e Outras Máscaras da Depressão
Apesar
de haver cada vez mais sensibilidade relativamente aos assuntos do foro da
saúde mental, a verdade é que alguns sintomas depressivos continuam a ser
desvalorizados e/ou a passarem despercebidos. Estar deprimido não é somente o
abismo negro, desesperante, que muitos imaginam. Não é obrigatório chegar ao ponto de
apresentar tendências suicidas; podemos estar deprimidos e continuar a
funcionar nos vários níveis da nossa vida, embora num ritmo e frequência
diferentes. Ou seja, estar deprimido não implica necessariamente abandonar o
trabalho ou negligenciar a higiene pessoal ou da casa e as relações familiares.
Muitos dos tantos que trabalham todos os dias, tomam banho e estendem a
roupa todos os dias, vão buscar os filhos à escola todos os dias, apresentam sinais
de depressão, em maior ou menor grau, que não os incapacitam na totalidade, mas
que diminuem a sua felicidade e qualidade de vida:
1. O
“cansaço” crónico: abatimento, inércia, apatia, “preguiça” de fazer as coisas, ausência de
vitalidade, de dinamismo, de energia;
2. A
falta de interesse e de alegria: ausência de entusiasmo pelas coisas, falta de
apetite pela vida, dificuldade em sentir prazer nas mais diversas
circunstâncias, levando, por vezes, ao isolamento social e relacional;
3. A
baixa auto-estima e desvalorização pessoal: sentimento de que ninguém gosta de
nós, que não temos valor e que não fazemos nada de jeito;
4. A
culpabilidade: perda da capacidade de distinguir uma acusação justa de uma
acusação injusta, aceitação acrítica das acusações que nos são dirigidas,
responsabilização excessiva ou mesmo ilógica perante as situações que não
dependem de nós;
5. A
perda da líbido, do desejo sexual: dificuldade ou incapacidade de retirar
prazer, gozo, da relação com o outro, às vezes justificada com o dito “cansaço”
ou pela acusação do outro;
6. A
perda de apetite ou alimentação descuidada: pouca vontade de comer e hábitos
alimentares nocivos e/ou nutricionalmente pobres (à base de “comida preguiçosa”,
como por exemplo, snacks, “fast-food”, guloseimas);
7. A
insónia e/ou fadiga: turbulência nos padrões de sono (dificuldade em adormecer,
sono interrompido, ou excesso de horas de sono mas pouco revigorantes);
8. As
dores físicas: queixas sistemáticas de sofrimento físico, seja ósseo, neurológico,
visceral ou muscular, com presença de dores mais ou menos resistentes aos
tratamentos médicos, muitas vezes sem diagnóstico clínico que justifique a sua
presença;
9. A
memória fraca: dificuldade em lembrarmo-nos detalhadamente dos acontecimentos e
atenção diminuída/empobrecida sobre a vida, muitas vezes atribuída à
“distracção” ou “cansaço”;
10. A
indecisão: um querer e não querer ou nem sequer saber o que se quer ou para
onde se vai, consequência directa da dificuldade em se ouvir a si mesmo ou de
confiar em si mesmo.
quarta-feira, 1 de julho de 2015
Da solidão necessária
A espécie humana é social, gregária, mas é também reflexiva e, nesse aspecto, solitária. Como diz uma professora e colega que estimo, "a vida está nos paradoxos". Porém, tantas vezes parece quase necessário justificar esse lado de quem privilegia estar só/sossegado num mundo que nos entra loucamente pela "porta" dentro todos os dias. Há umas décadas atrás, era diferente. Sabíamos, aceitávamos e não questionávamos que muitos momentos eram bons para se estar só. Hoje, na era das redes sociais e dos "open spaces", o solitário não "existe". Mais, se existe, é desrespeitado. Nem sempre quem se coloca à margem é amado e/ou considerado da mesma forma. Esta é uma questão que apenas faz sentido pensar aqui, neste mundo dito ocidental, onde a acção passou a ser mais valorizada que a contemplação e se esquece, tantas vezes, que a solidão também pode ter muitas vantagens. É no espaço de encontro connosco que podemos "ser", por oposição ao "fazer". E é quando podemos "ser" que nos surgem as melhores criações. É também na ausência que interiorizamos a presença, que aprendemos a guardar as coisas dentro de nós. E sem esses espaços de encontro connosco dificilmente podemos saber estar, verdadeiramente, com o outro.
O Viver Criativo
Uma
flor pode ser apenas uma flor ou pode ser uma flor que eu decidi usar para um
fim qualquer. Por isso, essa flor destaca-se de todas as outras e eu crio uma
relação com ela diferente de todas as outras. Num certo sentido, eu “criei”
aquela flor (naquilo que ela representa para mim e que não representa para mais
ninguém). Ela torna-se símbolo de algo. Ficará embebida numa emoção, numa memória,
num pensamento ou sensação. Sobre a sua rosa, dizia o principezinho às outras
rosas: “Claro que para um transeunte qualquer, a minha rosa é perfeitamente
igual a vocês. Mas, sozinha, vale mais do que vocês todas juntas porque foi a
ela que eu reguei.” Isto é a atribuição de subjectividade ao mundo objectivo e chamamos-lhe
o “viver criativo”. Ou, de uma forma mais simples, o brincar.
Há
esta ligação a preservar, entre a vida objectiva (a realidade compartilhada) e
a nossa vida subjectiva (a minha leitura da realidade). O grito de uma gaivota
pode ser (e é) apenas o grito de um gaivota, aquele grito ouvido no mesmo
preciso momento por uma centena de pessoas, mas é também, para mim e só para
mim, o trampolim para emoções, memórias, pensamentos e sensações; passadas,
presentes ou futuras. Talvez, então, aquilo que mais dá significado à nossa
vida seja essa arte do “viver criativo”, “brincando” com uma flor, o grito de
uma gaivota ou uma pedra no caminho. É o dom de transformar um mundo que já
existe. Transformá-lo, na perspectiva em que uma coisa passa a significar outra
coisa, simultaneamente objectiva e subjectiva: muito mais rica de simbolismo e
de substância.
Quando
a vida é demasiado concreta, falta significado às coisas. Falta viver criativamente.
Reinventar o mundo e, através disso, reinventarmo-nos. O viver criativo cresce
em nós, desde pequenos, se temos a possibilidade de brincar. Quando brincamos,
nada é o que é: um mata-moscas pode ser uma arma, uma formiga pode ser um
soldado, um caldo de folhas e flores pode ser uma sopa. Nesse espaço
transicional entre o que é e o que pode ser, vive-se criativamente. E essa arte
permanece por toda a vida.
O
viver criativo é a poesia do quotidiano. É abrir os olhos para o estético e para
o sensível e deixá-lo ligar-se ao concreto. É também e ainda, possibilidades
sem fim. É expansão pois, no limite, nada jamais se repetirá: chegamos ao mais
importante, todas as relações de amor podem ser diferentes todos os dias. Viver
criativamente é perceber essa potencialidade em todas as coisas. E na nossa
experiência, na nossa interioridade, nada será apenas aquilo que é, mas será sempre
uma espaço de transição entre o que é e o que pode ser. E que seja um lugar
onde fomos, ou poderemos ainda ser, mais felizes.
quinta-feira, 25 de junho de 2015
terça-feira, 23 de junho de 2015
Conformismo, Acomodações e Outras Histórias
I)
— “Conformei-me”,
disse-me.
Quando o conheci, parecia condenado. No
rosto, a ausência de esperança, na alma, a incapacidade de se afirmar senhor do
seu destino. Como mente bem, o Homem. Como se engana a si mesmo.
Como se defende e se justifica perante si próprio, como se ilude e finta o
julgamento que faz de si todas as noites. Como tenta não se olhar de frente no
espelho quando receia reconhecer ali os seus medos e incapacidades. Como quer esconder da sua alma que não foi
capaz de lutar por ela. Dói, o remorso. Dói, a impotência. Dói, o medo. Mas, no
íntimo mais íntimo de nós, sabemos.
— Conformaste-te
ou tens medo?
— Tenho medo. Eu
tentei mas era sempre tão difícil. Fui desistindo. Eu sonhava mas deixei de
sonhar. Conformei-me.
— O medo fez com que te conformasses e por te conformares abriste
caminho ao medo. O medo come tudo. Foi precisamente isso que te enfraqueceu. A
incapacidade de “continuar a ser”.
Por cada momento em que
nos falha a possibilidade de “ser” ou a coragem de “continuar a ser” matamos um
pedaço de nós. Ficamos mais frágeis e mais perdidos a cada “derrota” percebida.
E a cada batalha que recuamos, sabemos menos quem somos.
II)
— “Não sei porque me acomodei, disse-me.
A história repete-se. Quando a conheci era uma mulher, sobretudo, confusa. Não tinha ainda consciência
de que tinha deixado, há demasiado tempo, de ser feliz.
— Tu sentias mas acho que só agora consegues pensar sobre isso.
— Sim, eu já sabia. Eu sentia-me só mas não quis ver. E isso
deixa-me zangada. Comigo.
— Por cada pensamento
reprimido, por cada discussão adiada, por cada zanga amordaçada, por cada grito
silenciado, é um pedaço de ti que matas. Foi precisamente isso que te
enfraqueceu. A incapacidade de “continuar a ser”.
III)
Duas vidas. Várias vidas. O mesmo dia. O mesmo medo. O
medo de se permitir ser pessoa inteira. Como se faz? Por onde se vai? Então lembro-me do Alexandre O’Neill,
que sabia destas coisas do medo, companheiro da condição humana, e
contava, em parte, assim:
(…)
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos (…)
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos (…)
IV) Ou não.
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terça-feira, 16 de junho de 2015
Coisas Bonitas
Deixa-me fazer-te
cócegas. Deixa-me fazer-te rir. Deixa-me falar-te das coisas bonitas que passam
despercebidas. Deixa-me fazer-te sorrir no dia mais triste. Vem dançar comigo.
Deixa-me aquecer-te os recantos gelados onde o sol nunca entrou. Falo-te da
alegria de estarmos aqui no mundo ao mesmo tempo. Podíamos nunca nos ter
encontrado, já pensaste nisso? E agora, já sorris? Falo-te da graça escondida
nas cabeçadas que damos todos os dias aqui neste lugar onde nos enfiaram. É tão
tristemente engraçado. Falo-te da sublime arte de rir e chorar ao mesmo tempo.
Falo-te também da curta gargalhada dos momentos simples e ligeiros. Vá,
deixa-me fazer-te cócegas. Deixa-me fazer-te rir. Deixa-me fazer-te bem.
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sábado, 13 de junho de 2015
A pergunta do eterno retorno
Se pudéssemos repetir a nossa vida tal e qual como ela se desenrolou até hoje, desejaríamos fazê-lo? O sábio Zaratustra, de Nietzsche, vai mais além, e pergunta: “E se um dia ou uma noite um demónio fosse atrás de ti até à tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há-de retornar.” Que sentiríamos?
A ideia de repetir ciclicamente a mesma vida,
passando por tudo da mesma exacta maneira, pode funcionar como um exercício
importante para questionarmos a direcção e o sentido que temos dado à nossa aparentemente curta existência. Embora uma existência em loop seja, por si só, assustadora, a melhor hipótese seria fazer dela o mais agradável possível. Então, se fosse
garantido o nosso eterno regresso, exactamente nos mesmos moldes que na actualidade,
até onde estaríamos dispostos a mudar coisas por forma a assegurarmo-nos de uma
eternidade feliz? É importante ir questionando se o nosso percurso tem sido
fundamentalmente prazeroso ou se é, pelo contrário, insatisfatório, ou mesmo
terrível. Quantos de nós amam a sua vida? Ao fazer este balanço, o
propósito não é mergulharmos em lamentações quanto ao que já passou mas sim
dirigir o olhar para o que ainda pode vir. Amar o seu destino ou, mais
adequadamente, criar um destino que sejamos capazes de amar.
Porém, nenhuma transformação positiva pode ter lugar se vivermos exclusivamente agarrados à ideia de que a
nossa vida é como é por forças exteriores a nós: azar, má sorte, karma, sina, fado ou destino. A pergunta de Zaratustra obriga-nos a olhar a forma como pensamos as responsabilidades. Percebemos que o perigo de depositar a
responsabilidade da nossa caminhada (e/ou da nossa insatisfação) no universo ou em qualquer outro exterior a nós mesmos, é que a situação poderá não
sair do impasse. Então, se o demónio de Zaratustra nos condenasse, hoje, ao eterno retorno, continuaríamos no mesmo exacto lugar, estado e formato em que nos encontramos? Sentiríamos contentamento e satisfação em regressar à nossa existência assim como a temos conduzido? Ou seria um sufoco? E se assim for, seríamos passivos ou activos? Quanto tempo mais permaneceríamos no mesmo lugar? Até quando ficaríamos à espera? Até onde aguentaríamos? E se, efectivamente, nada acontecer? Nenhum milagre, nenhuma reviravolta fácil, nenhum chamamento ou insight? E se só nós somos responsáveis pela vida que levamos e pelos
pilares que a sustentam? Transformaríamos a nossa vida, perseguindo sonhos, concretizando projectos, assumindo desejos? A liberdade de escolher fazê-lo é
nossa. E a responsabilidade de escolher não o fazer, também.
É desconfortável pensar estas questões. É duro sentir este peso da hipótese mais certa: em última análise, os agentes da nossa felicidade e infelicidade somos nós. Que terrível sermos o nosso próprio carrasco. Sim, é desconfortável, mas é, garantidamente, o caminho possível nisto que é o curso da nossa vida. Sem essa consciência, mínima, talvez passemos o tempo que nos sobra à espera de algum milagre. Pode chegar. Ou não. Entretanto, é importante irmos aferindo o que se passa cá dentro. É preciso ouvirmo-nos a nós mesmos, escutar
a voz que às vezes soa baixinho e que tantas vezes ignoramos (escondidos na ideia de
que não há volta a dar ou no medo de tudo e mais alguma coisa) para que, caso o dito demónio nos obrigue a regressar, a coisa seja o mais simpática possível. E mesmo que não regressemos, mesmo que seja "só" isto, não será igualmente crucial aproveitar o melhor possível?
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segunda-feira, 1 de junho de 2015
Bala de Canhão
Recordam-nos que quase tudo é possível — eles sabem melhor
que nós que os monstros existem e ensinam-nos que é preciso acreditar em magia
uma vez por outra. Reconduzem-nos o olhar para baixo — eles mostram-nos que
quem ergue demasiado o queixo perde a noção do chão e tropeça mais.
Relembram-nos que é preciso sonhar — eles levam-nos em altos vôos no Bala de
Canhão mesmo que o nariz fique todo amassado das mil vezes em que se despenha a
pique. Que todos possam ter sempre uma criança por perto para mantermos fresco
o nosso pensamento e doce a nossa alma. Eu cá tenho muita sorte!
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quinta-feira, 30 de abril de 2015
Pessoas
Toda a prática
de yoga remete para o equilíbrio, i.e., para a harmonização de forças opostas.
E assim sendo, oscila entre movimentos de avanço e retrocesso, actos de coragem
e rendição, momentos de segurar e largar, trabalho de transição e permanência, consciência
de força e ligeireza, sensações de prazer e dor. Nessa oscilação no tapete, perfeita
metáfora da vida, buscamos o centro de todas as coisas. Principalmente o nosso — corpo e mente.
Esse lugar de conforto onde nos encontramos connosco. Onde respiramos sem
dificuldade e onde nada dói. Onde sentimos paz. Só que não podemos ficar muito
tempo aí porque a oscilação é o estado natural do mundo e porque o crescimento
e expansão se faz pelo desconforto, pelo risco, pelo negativo. E saímos do
centro. Essa dinâmica é a condição mais básica do desenvolvimento: onde há
paragem, não há vida. Nesse processo, há momentos de força extraordinária. Saímos
do centro, atiramo-nos de cabeça e somos capazes de fazer qualquer coisa. Na
força descobrimo-nos, ultrapassamo-nos. Encontramos mundos e talentos
desconhecidos, potencialidades e possibilidades. E de cada vez que assim é, mudamos
o nosso rumo, transformamo-nos a cada novo encontro. Depois, há os desafios que
não superamos. Repetimos, ruminamos, ficamos ali. E aí, o contrabalanço dos momentos
de humildade e vulnerabilidade profunda que remetem para a nossa absoluta
impotência perante os caminhos de evolução das coisas. E aí, rendemo-nos. Rendemo-nos
perante os paradoxos. Perante a constatação de que somos tudo e ao mesmo tempo
não somos nada. Estendemos os braços e encostamos a testa ao chão e que seja o
que for quando tiver que ser. Quem somos nós afinal? E na rendição também nos
descobrimos e ultrapassamos. Quando nos rendemos, todo o peso desaparece e é
sublime porque somos, subitamente, leves, muito leves. Assim leves, um pequeno
sopro pode levar-nos para onde calhar e poderemos descobrir coisas que ainda
não conhecíamos nem esperávamos. Quando nos rendemos, entregamo-nos nos braços
de algo seguramente maior que nós, que somos tão pequenos para compreender toda
a dimensão da vida. E aqui vamos existindo, oscilando entre rendições e
actos de coragem, porque a leveza do ser é insustentável por muito tempo mas a
coragem sistemática é para guerreiros sobre-humanos. E nós somos e seremos,
sempre, simplesmente pessoas.
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terça-feira, 28 de abril de 2015
segunda-feira, 13 de abril de 2015
Matemática dos Beijos
— Um, dois, três, duzentos e cinquenta e
sete, cinco mil setecentos e quarenta e nove: quantos beijos cabem na vida?
— Talvez quarenta milhões? (sorriso) Não
sei. Curtos ou longos? Tudo depende da duração. Num dia cabem mil quatrocentos
e quarenta beijos de um minuto ou um beijo de mil quatrocentos e quarenta
minutos. Tu é que escolhes.
— Tens razão. Isso da duração importa.
Fizeste-me lembrar também daqueles beijos que ficam connosco já depois de se
irem, sabes? E às vezes até se cruzam com outros que hão-de vir: "Olá,
ainda por aqui?".
— É, há beijos que se demoram e acho até
que alguns nunca acabam. Mas a memória de um beijo vale por um beijo, não?
— Olha que não sei. Cada beijo lembrado
pode contar como um novo beijo. Podemos escolher também aqui.
— Hum. E incluindo beijos de que tipo?
— De todos. Dos beijos dados, dos beijos
roubados, dos beijos perdidos e dos achados. Dos beijos que procuram e dos
beijos que encontram. Dos que fracturam e dos que reparam. Dos que rompem e dos
que ligam. Dos beijos que acordam, dos que adormecem. Dos que se encontram à
esquina e dos que chocam de frente. Dos de passarinho e dos de corpo inteiro.
Dos enternecidos e dos apaixonados. Dos que nos esclarecem e dos que nos
confundem. Dos que quase enlouquecem, no bom sentido. Beijo é sempre no bom
sentido. Dos beijos que acalmam e dos que assustam. Dos que respiram e dos que
sufocam. Dos beijos que nos dissolvem, sabes? Dos beijos-buracos-negros que
acabam com a gravidade e nos sugam em espiral para lá do tempo e do espaço. Dos
beijos que desaparecem. E dos que nos perseguem. Perseguem. Perseguem.
Perseguem.
— Mas queres fazer contas ou escrever um
poema?
— Pois se calhar a matemática não se
aplica a isto. Teríamos ainda a questão dos beijos sonhados.
— Também querias ir por aí?!
— Claro. Quero ir por todos os lados.
— (sorriso)
— ah! E o beijo dos beijos. Teríamos que
contar com o beijo dos beijos.
— Qual?
— Tu sabes. É aquele que não se pode
lembrar...
— O que há-de vir?
— Pois. Também não custaria nada. É só
somar um no fim.
— (sorriso) Qual fim? Contigo será
impossível contabilizar beijos.
— Se calhar. Que se lixem as contas. O
que importa é que é sempre a somar. E para que não haja desperdícios lembra-te
disto que é importante: um beijo que não se dá é um beijo que não se deu.
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sexta-feira, 10 de abril de 2015
D'Os Passos em Volta
Series Seven Chair by Arne Jacobsen |
Uma vez fui a um médico.
– Doutor, estou louco – disse. – Devo estar louco.
– Tem loucos na família? – perguntou o médico. – Alcoólicos, sifilíticos?
– Sim, senhor. O pior. Loucos, alcoólicos, sifilíticos, místicos, prostitutas, homossexuais. Estarei louco?
O médico tinha sentido de humor, e receitou-me barbitúricos.
– Não preciso de remédios – disse eu. – Sei histórias tenebrosas acerca da vida. De que me serve barbitúricos?
– Doutor, estou louco – disse. – Devo estar louco.
– Tem loucos na família? – perguntou o médico. – Alcoólicos, sifilíticos?
– Sim, senhor. O pior. Loucos, alcoólicos, sifilíticos, místicos, prostitutas, homossexuais. Estarei louco?
O médico tinha sentido de humor, e receitou-me barbitúricos.
– Não preciso de remédios – disse eu. – Sei histórias tenebrosas acerca da vida. De que me serve barbitúricos?
A verdade é que eu ainda não havia encontrado o estilo. Mas
ouça, meu amigo: conheço por exemplo a história de um homem velho. Conheço
também a de um homem novo. A do velho é melhor, pois era muito velho, e que
poderia ele esperar? Mas veja, preste bem atenção. Esse homem velhíssimo não se
resignaria nunca a prescindir do amor. Amava as flores. No meio da sua solidão
tinha vasos de orquídeas.
O mundo é assim, que quer? É forçoso encontrar um estilo. Seria
bom colocar grandes cartazes nas ruas, fazer avisos na televisão e nos cinemas.
Procure o seu estilo, se não quer dar em pantanas. Arranjei o meu estilo estudando matemática e ouvindo um pouco de música. – João Sebastião Bach. Conhece o
Concerto Brandeburguês n.º 5? Conhece com certeza essa coisa tão simples, tão harmoniosa e definitiva
que é um sistema de três equações e três incógnitas. Primário,
rudimentar. Resolvi
milhares de equações. Depois ouvia Bach. Consegui um estilo. Aplico-o
à noite quando acordo às quatro da madrugada. É simples: quando acordo aterrorizado, vendo as grandes
sombras incompreensíveis erguerem-se no meio do quarto, quando a pequena luz se
faz na ponta dos dedos, e toda a imensa melancolia do mundo parece subir do
sangue com a sua voz obscura… Começo a fazer o meu estilo. Admirável exercício,
este.(…)”
Herberto
Helder, Os Passos em Volta (Assírio e
Alvim), pp. 9-11
terça-feira, 7 de abril de 2015
Os rebanhos
A
história de um rebanho começa sempre no seu pastor. Neste caso, faremos uma
viagem à mente enlouquecida de um homem, L. Ron Hubbard, que achou que podia e
devia salvar a espécie sabe-se lá do quê (dèja vu?). Se calhar queria salvar-se
a si mesmo e de si mesmo mas isso não podia saber ou aceitar. Então parece que
pessoas assim constroem estes impérios de devaneios na exacta medida do seu
desespero.
Depois
o pastor morreu e outro o substituiu mas o rebanho permaneceu.
Chamamos-lhe rebanho quando deixa de existir a possibilidade de pensamento e/ou divergência. Ou seja, o que merece mais atenção é que vamos encontrando ao longo da História certos sistemas de crenças que capturam emocionalmente e fazem das pessoas aquilo a que poderíamos chamar reféns-de-livre-vontade. É aquilo a que chamamos uma lavagem cerebral. E isto repete-se, em maior ou menor escala. Mudam as circunstâncias e os ideais vendidos mas repetem-se os mecanismos psicológicos que prendem (bem como os que facilitam deixar-se prender). De um lado estamos no campo da manipulação. Da mentira psicótica. Do poder, controlo e domínio do outro. Estamos no campo da doutrinação. Estamos no campo da loucura que infelizmente se propaga quando encontra terreno fértil — a mentira mágica e omnipotente pega bem quando encontra uma mente que procura ser guiada e ver-se livre da responsabilidade do rumo da sua própria vida; mente onde habita uma alma perdida em busca de um sentido para a sua vida, seguramente frágil e carente de uma identidade, talvez também de afecto, reconhecimento e pertença. Este é o outro lado. Traduz-se num gesto que podia ser um encolher de ombros que finalmente encontra uma mão aparentemente sólida a que se agarrar e que repare o narcisismo danificado fazendo-o sentir parte de algo "maior", ainda que o preço seja elevado. Depois é só caminhar com o rebanho e é um pequeno passo até permitir que frutifiquem as ilusões e que se permitam os abusos, a si e aos seus, sem questionar, sem querer ver. Se perguntamos às pessoas porque permanecem ali ou porque fazem o que fazem a resposta será papagueada e, em última análise, não saberão sequer responder. Está aquém do pensamento.
Chamamos-lhe rebanho quando deixa de existir a possibilidade de pensamento e/ou divergência. Ou seja, o que merece mais atenção é que vamos encontrando ao longo da História certos sistemas de crenças que capturam emocionalmente e fazem das pessoas aquilo a que poderíamos chamar reféns-de-livre-vontade. É aquilo a que chamamos uma lavagem cerebral. E isto repete-se, em maior ou menor escala. Mudam as circunstâncias e os ideais vendidos mas repetem-se os mecanismos psicológicos que prendem (bem como os que facilitam deixar-se prender). De um lado estamos no campo da manipulação. Da mentira psicótica. Do poder, controlo e domínio do outro. Estamos no campo da doutrinação. Estamos no campo da loucura que infelizmente se propaga quando encontra terreno fértil — a mentira mágica e omnipotente pega bem quando encontra uma mente que procura ser guiada e ver-se livre da responsabilidade do rumo da sua própria vida; mente onde habita uma alma perdida em busca de um sentido para a sua vida, seguramente frágil e carente de uma identidade, talvez também de afecto, reconhecimento e pertença. Este é o outro lado. Traduz-se num gesto que podia ser um encolher de ombros que finalmente encontra uma mão aparentemente sólida a que se agarrar e que repare o narcisismo danificado fazendo-o sentir parte de algo "maior", ainda que o preço seja elevado. Depois é só caminhar com o rebanho e é um pequeno passo até permitir que frutifiquem as ilusões e que se permitam os abusos, a si e aos seus, sem questionar, sem querer ver. Se perguntamos às pessoas porque permanecem ali ou porque fazem o que fazem a resposta será papagueada e, em última análise, não saberão sequer responder. Está aquém do pensamento.
E
assim, uma e outra vez regressamos ao conceito de “banalidade do mal” de Hannah
Arendt para que não sobrem dúvidas que a falta de capacidade crítica, de um
“aparelho pensante” (como lhe chama Coimbra de Matos) é o pior inimigo do
Homem. Como diz, no fim do documentário, um dos entrevistados: “If we believe
in something we don’t really have to think for ourselves, do we?”.
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